Olho de novo o perfil do homem sentado do outro lado do estreito corredor deste ônibus no qual, hoje, cruzo mais uma vez um sertão, qualquer sertão. Vi-o pela janela quando irrompeu e acenou à margem da estrada, vindo de nenhum caminho, nenhuma habitação humana, emergindo do deserto, emaranhado compacto de garranchos e cactos. O ônibus parou arquejando, e eu adivinhei que ele vinha sentar-se ao meu lado, apesar de tantas cadeiras vazias. Ele veio, grande, maciço, cheirando a couro curtido, suor e tabaco.
O odor flui da minha memória, decerto, porque este ao meu lado veste-se com um caubói de rodeio e cheira a água-de-colônia barata. Sentou-se, as costas retas, as mãos pousadas sobre os joelhos, os olhos fixos perfurando o espaldar da poltrona à sua frente e assim ficou até agora. Difícil deixar de olhá-lo, ainda mais quando sua figura se transforma, à contraluz, em silhueta de perneira, gibão e chapéu de couro, estátua encourada revolvendo-me as lembranças. Agora que o sol se meteu por detrás das nuvens esfarrapadas, logo acima do horizonte, tingindo o mundo, o vaqueiro destaca-se, negro como xilogravura contra o fundo avermelhado, e percebo em mim uma sensação de suspensão e expectativa: desejo e espero que ele lance, enfim, o seu aboio. Há mais de quarenta anos carrego essa imagem e esse canto em algum socavão da alma que agora se ilumina.
Os faróis deste carro velho são tão fracos que não mostram nada do caminho, nada me distrai das imagens que voltam da minha primeira tarde naquele outro sertão. Deixo divagar a memória enquanto todo o resto, o caubói, o ônibus, a caatinga, a estrada, mergulha na escuridão.
Eu fazia trinta anos no dia em que me meti pela primeira vez nesta aridez. Ainda não se havia espalhado por toda a terra a ilusão de poder-se fraudar o tempo e afastar indefinidamente o envelhecimento e a morte com técnicas cirúrgicas e calistênicas, fórmulas químicas, discursos de autopersuasão, mantras, injeções, próteses, lágrimas e incensos. Então, só era possível fazê-lo tornando-nos heróis, mártires, mitos, símbolos. Apostava-se a vida no que acreditávamos ser maior que a nossa própria vida. Encher de sentido o tempo era, então, mais urgente pois tão passageiro, urgência de marcar o mundo com nossa existência, mesmo que arriscando-nos a torná-la ainda mais breve. Ultrapassar os trinta anos era atravessar o portal da juventude para a idade adulta. Era, então, o exato meio da vida.
Vejo-me outra vez jovem ainda, sentada sobre o tronco de um coqueiro decepado e deitado em frente à casa que me cabia, naquele povoado cujo nome explicava a razão de sua existência, tão longe de tudo: Olho d’Água, como tantos outros mínimos oásis espalhados pela vastidão das terras secas. Eu me escorava na parede caída em branco, havia pouco abandonada pelo sol, dando às minhas costas o único alívio possível contra o calor que me abateu desde a manhã, bem cedo, quando apeei do caminhão meio desmantelado que me levou àquele exílio.
Talvez seja essa lembrança que me faz sentir agora um desconforto maior e uma necessidade de acomodar melhor minhas costas. Luto contra a alavanca para reclinar o encosto da poltrona, sem conseguir movê-la, emperrada. Insisto, e meus esforços fazem mexer-se, pela primeira vez, o vaqueiro no assento vizinho. Ele se inclina sobre o corredor e, com extrema facilidade, levanta a alavanca e empurra o espaldar para trás. Agradeço, ele apenas acena com a cabeça e volta à sua posição de estátua, petrificado como eu estivera no calor daquela minha primeira tarde sertaneja.
Naquele remoto entardecer, depois de um dia inteiro prostrada na rede, exausta da longa viagem, eu não era capaz de mais nada, senão de me arriscar até a porta da casa e olhar vagamente, através de um filtro líquido e salgado prestes a desfazer-se e escorrer pelo papel seco e quebradiço que substituirá minha pele, as poucas casas brancas, de janelas e portas fechadas, agarradas umas às outras, mortas de medo do imenso e árido espaço à sua volta. Entre elas, a rua larga de areia branca e salgada, mais salina que sertão, esparsas algarobas quase transparentes, insistindo em dizerem-se verdes naquele cenário branco e cinzento. E eu quase já não podia crer que esse sertão ainda haveria de ser mar. As esperanças trazidas na minha bagagem pareciam resistir menos do que aquelas árvores esquálidas e não conseguiam permanecer incólumes nem um dia inteiro diante do vazio daquele lugar. As esperanças levadas por mim naquela primeira viagem eram muito maiores e mais curtas do que as de agora, cujo sopro me fez embarcar neste ônibus. Para falar de esperanças me chamaram de novo ao sertão e vou pensando que as minhas mudaram e se tornaram muito mais modestas e pacientes do que antes, talvez envelhecidas como eu. Começaram a mudar naquele dia, quando, pela primeira vez, me meti nesta paisagem áspera e espinhosa.
No cenário descortinado da frente da casa, podia-se ver o silêncio sólido do fim de tarde de um domingo num mundo sem nada, ninguém, mundo sem criador, parecia. Só eu estava lá, mergulhada na ausência, incrustada e imobilizada na quentura espessa, como um fóssil na rocha. Teria chegado ao fim do mundo, onde tudo pára, não há mais lugar para lutas? A razão nada me dizia e meu corpo entregava-se à imobilidade de um calango sobre a pedra, uma quase desistência de qualquer mudança. De dentro de mim não vinha mais nenhum esboço de movimento. Já me via naufragando em lágrimas e na decepção de nada encontrar ao fim de tão longa e arriscada viagem, não fosse, de repente, a irrupção de um longínquo canto, outra voz, inteiramente outra, mas que eu reconhecia, atravessando o susto, voz humana. Ôôôôôôôôô êêêêêêê ôôôôôôôôôôôô. Pareceu que aquele canto fazia uma tinta encarnada surgir do chão, no horizonte, e elevar-se, encher o céu e chegar aonde eu estava, até então, sozinha e tornada em mineral, tingindo-me e tudo ao meu redor.
Alguém, no assento logo atrás do meu, liga um rádio e me obriga a ouvir fragmentos de sermões evangélicos, de funks, de anúncios comerciais, e finalmente se resolve por um programa de canções melosas, a duas vozes, a mais alta uma terça acima da mais grave, pontuadas por gritos de locutor de rodeio, “Segura, peão!” O caubói ao meu lado mexe-se de novo, talvez animado por suas próprias esperanças, ganhar uma moto ou um carro na próxima vaquejada? Saberá ainda aboiar? Ou já é daqueles agora a tanger o gado apenas com o rugido de uma motocicleta? O rádio começa a falhar e já não consegue sintonizar mais nenhuma estação. Sinto-me aliviada e volto às minhas lembranças daquela tarde perdida no passado.
O primeiro canto que ouvi naquele anoitecer vinha de tão longe, era difícil saber se me chegava pelos ares dali ou se memória e nostalgia me enganavam, trazendo de volta o muezim argelino que, havia apenas uns poucos meses, da alta torre de Beni-Isguen, me despertava e me fazia correr ao muxarabiê de meu quarto, mesmo ao pé da almádena, para beber a primeira luz e a primeira voz do dia inundando o vale do M’Zab. Não, o almuadem pertencia a outro tempo e a outro deserto, já mais longe ainda, da existência dele eu sabia antes de ouvi-lo. Eu havia escolhido voltar à minha terra, pensava, e ela me respondia com uma estranheza tão maior que todas as outras terras que eu havia percorrido.
À primeira voz percebida, ao cair do sol, respondeu outra e outra mais, chegando-me de todos os quadrantes, como se descessem do almocântara, em ondas sucessivas, cada vez mais fortes. De quem, esse canto? De quem, se vejo apenas uma estrada vazia, apagando-se à medida que escurece o vermelho do sol posto? De quem? De minha imaginação confusa pelo calor, pela secura, pela estranheza deste desterro? Então eu os vi, um a um, silhuetas negras recortadas contra o céu, bem à minha frente, ainda como figuras de folheto de cordel, eles, seus cavalos, suas reses, seu coro de aboios acompanhado pelo badalar dos cincerros, movendo-se majestosamente em suas rústicas panóplias, a beleza feita sombra e som. Ôôôôôôôôô boi êêêêêêê booooooi ôôôôôôôôôôôô.
É fácil, hoje, assim envolta pela noite da caatinga e pelo ruído monótono do ônibus rodando sobre asfalto, voltar àquele dia, àquela outra viagem, àquele povoado no fim dos caminhos. Nesta viagem não quero dormir como os outros que já ouço ressonar.
Posso ouvir por dentro o canto dos aboiadores, imaginar-me ali a esperar o vento varrer o calor do dia, a lua subir do horizonte e, aproveitando o pouco luar capaz de meter-se por entre as frestas do telhado, beber dois copos d’água fresca, quase esvaziando da quartinha minha ração de líquido potável para a noite, tateando encontrar a porta do quarto, os ganchos de madeira nas paredes, armar a rede e deixar-me levar por ela, sem saber ao certo se aqui começa ou acaba o sonho. Como se fosse hoje.
Revejo na imaginação as descobertas do meu primeiro amanhecer em Olho d’Água, em que acordei ouvindo, a princípio vagamente, em seguida mais nítida, à medida que o sono se dissipava, uma algaravia meio humana meio bando de passarinhos na qual, aos poucos, distingui, “Maria, Maria”. Demorei a reconhecer-me no nome chamado. Custou-me um enorme esforço levantar-me da rede, vestir meu cafetã, rasgar um caminho no colchão de calor entre meu quarto e a porta para a rua, abri-la que mugia como um novilho e encontrar os faróis dos olhos nas caras escuras, recriadas do barro feito de poeira e suor.
Um bando de meninos me espreitava. Nos peitos, o teclado perfeito das costelas expostas, nas costas, saliências pontiagudas, duros cotos de asas cortadas antes mesmo de que vissem a luz por primeira vez. Nus vieram ao mundo e nele permaneciam, quase nus e inocentes, não por serem incapazes de fazer o mal, mas por serem ignorantes do mal que lhes podia ser feito. Riam à minha volta, com a alegria de quem descobre pela primeira vez o hipopótamo no zoológico. Eu sabia como eles se sentiam, eu também tinha rido assim, bobamente, quando me deparei, havia pouco tempo ainda, com meu primeiro camelo solto, bamboleando livre num palmeiral da Argélia e chegando cada vez mais perto de mim.
A estrada por onde vou hoje passará a menos de uma légua daquele lugar que talvez ainda se chame Olho d’Água e abrigue um povo mais livre, junto a cada casa uma cisterna, como as que vi espalhadas ao longo deste trajeto antes de escurecer, novinhas, brancas, na forma de um peito materno, recebendo a água das biqueiras do telhado, no inverno, dando de beber aos filhos, no verão. Talvez. Mas esta mesma estrada pode ter sido a rota de fuga para todos eles e, quem sabe, já não estão lá OS homens que, ainda meninos, me saudavam risonhos e me chamavam Maria.
Quando assim me chamaram pela primeira vez e respondi “Eu… Bom dia”, cada um deles pôs-se a repetir “Bom dia, Maria” e, rindo, encolhiam-se uns por detrás dos outros, assustados com seu próprio atrevimento. Dei-me conta, então, de que, talvez havia muitas gerações, não chegava um estranho para viver ali, naquele lugar escondido por onde ninguém passava, onde se acabava o caminho e era na direção contrária que corria o rio da vida migrante. Lá não se costumava chegar, de lá só se ia embora.
O motorista deste ônibus acende as luzes, para e deixa entrar um fiscal qualquer. Custo a adaptar a vista que descansava no escuro enquanto outros olhos, imaginários, viam os meninos de Olho d’Água. Mas a frase do fiscal, interpelação costumeira que me canso de ouvir em toda parte, lança-me de novo ao passado: “Já tem a passagem, dona Maria?” Dou-lhe o bilhete já de olhos fechados, ouvindo outras vozes.
“Maria, Maria, Maria”, iam-me nomeando, eu me reconhecendo, “Bom dia”, somente Maria, um dos nomes que certamente me pertenciam, mas até então tinha ouvido apenas na chamada da escola ou na voz de minha mãe quando se enfadava, o nome que declarei ao chegar, nem sei mais a quem, para servir-me como senha, fazer-me uma entre todas as outras Marias do lugar onde eu devia esconder-me, tornar-me como um peixe dentro d’água, preparar o terreno para quem viesse depois de mim. Olhávamo-nos curiosos, aquelas crianças e eu, não sabia mais o que lhes dizer, nem eles, intimidados eles e eu, e recomeçavam: “Bom dia, Maria”, um a um, até o constrangimento se desfazer em riso e eles saírem em correria pela rua branca.
* * *
Numa das paradas deste ônibus vi entrar uma mulher com dois meninos vestidos em suas calças jeans, seus tênis e camisetas com uma besteira qualquer escrita em inglês e figuras de desenhos animados japoneses. Suas caras não enganam, são sertanejos como eram aqueles, mas já não têm a barriga inchada, a pele encardida e arranhada como os de quarenta anos atrás. Minha razão me diz que estes de agora vivem melhor e devo alegrar-me por isso, mas meu coração já não se enternece tanto como daquela vez, diante dos outros que eu acreditava precisarem de mim.
Os meninos daquele tempo, correndo como bichinhos ariscos, dirigiram meu olhar para uma cena de pura surpresa. O vermelho do céu da véspera, última cor a tocar meus olhos, antes da treva da noite e do branco incandescente do sol de verão sertanejo, quase a me cegar, dividia-se agora em feixes de inúmeras cores, cortando o espaço entre casas e algarobas. “O que pode ser isto? Como vieram parar aqui as cores da tinturaria que me encantava em Ghardaia, os matizes das artesãs mozabitas preparando as lãs para tecer seus tapetes ancestrais? Como chegou aqui o colorido das vestimentas das Guadalupes do deserto de Zacatecas?” Tive de fechar os olhos e tentar reorganizar as ideias. “Por que invento agora ilusões para convencer-me de minha volta a um daqueles outros exílios que me ofereceram e não reconheço que estou neste lugar, escondido e descorado, escolhido por mim como meu próprio deserto?” Eu me perguntava, confusa. Quando reabri os olhos, os matizes pareciam ainda mais vivos.
As cores moviam-se, e aos poucos percebi vagamente vultos humanos entre elas, traçando uma imensa teia multicor. Não havia outra saída para minha confusão senão aproximar-me deles, suportar seus olhares de curiosidade e dúvida, talvez suspeita, responder às suas poucas perguntas e pedir deles respostas para tudo, expondo-lhes todas as minhas ignorâncias. Foi meu primeiro e curto passo em direção a alguma humildade, indispensável para sobreviver naquele mundo ao rés das raízes, do qual eu nada sabia. Quando decidi tomar o caminho de volta para minha terra e entranhar-me no sertão, escolhendo o exílio para dentro, depois de atravessar todos os lugares para onde afluíam os que precisavam e os que não precisavam fugir, sem desejar permanecer em nenhum deles, pretendi tudo saber de antemão, o já acontecido e o ainda por vir, lendo tudo o que as literaturas me ofereciam. Mergulhar mais fundo na terra e abrir os olhos sob a superfície, porém, permitia ver uma vida miúda, insuspeitável, que não chegava à tona dos livros. A cada passo um espanto, obrigando-me a perguntar tudo a todos.
Tenho ainda uma noite inteira pela frente neste ônibus incômodo e terei de estar alerta e esperta para dizer coisas que pareçam inteligentes, quando chegar ao destino. Esperam isso de mim. Deveria dormir, descansar o espírito e os neurônios, tento acomodar melhor meus ossos velhos, mas o sono não se acomoda, vai e vem, mantendo-me suspensa entre as imagens daquele chão já fora do tempo e este chão de hoje, quase o mesmo no mapa, mas cujo perfil me causa estranheza, semeado de antenas e torres fazendo parecer miniaturas as casas, já não apenas brancas ou cor de terra, seus raros coqueiros e as algarobas. Na fronteira do sonho, para além do zumbido do motor e do ressonar dos outros viajantes, impõe-se aos meus ouvidos a música daquele povo, feita toda de incansável trabalho.
* * *
Custava-me caminhar pela areia solta daquela rua branca, como tinha me custado avançar pelas dunas do Saara, quando ousei, pela primeira vez, abandonar a estreita faixa de asfalto que as cruzava, e quase esperava ver de novo o homem então surgido do vazio, tocado pelo vento a enfunar-lhe o albornoz, recolhendo-se em seguida para rezar sobre sua almoçala. O mesmo peso dos pés afundados na areia, a mesma confusão da vista encandeada pela luz brutal do sol sem o filtro da umidade nem da poeira.
Caminhei atrás dos meninos para o lugar onde parecia haver mais gente e, aos poucos, os contornos esfumados ganharam nitidez e pude distinguir, uma a uma, as aranhas tecedeiras daquela teia colorida.
O silêncio da manhãzinha ia tomando uma qualidade nova, de burburinho, mistura de vozes, borbulhar de águas, mugidos distantes, farfalhar de folhas, pancadas de madeira contra madeira, cuja origem eu não identificava e ainda não faziam qualquer sentido.
Trabalhava-se ali tanto quanto nunca pensei que se pudesse trabalhar. O caminhão chegava aos sábados, carregado de fio de algodão cru. Aos domingos, todos, menos os poucos vaqueiros, permaneciam escondidos em suas casas, por respeito estrito à lei divina do repouso semanal ou pela exaustão feita lei, e a rua se despovoava como as cidades sagradas do M’Zab às sextas-feiras. Mas na madrugada do dia seguinte, neste outro vale, de areia entre paredes brancas, recomeçava-se um ciclo eterno: velhas banheiras de ágate rachado e salpicado de ferrugem, sobre suas patas de animais estrangeiros, resgatadas de algum ferro-velho de antiga vida urbana, serviam como cubas para tingir o fio que devia ferver por horas, em água salobra e anilinas corrosivas, sobre fogueiras alimentadas sem cessar pela lenha pobre, rapidamente consumida, exigindo um constante vaivém de meninos, fileira de formigas bípedes.
Mexer, sem parar, o fio e a tinta borbulhante, retirar com longas varas as meadas coloridas, fumegantes, e pô-las a secar sobre uma sucessão de cavaletes rústicos, desenlear o fio, já seco, e enrolá-lo em grandes bolas para depois urdir os liços, entremeando as cores em longas listras, transformar o povoado naquele espantoso arco íris desencontrado, era trabalho de macho. Começava ao primeiro anúncio de luz do dia, no meio da única rua, e prosseguia até que eles já não pudessem mais ver as próprias mãos e o som do aboio viesse rendê-los, interrompendo-se apenas com o sol a pino, quando desapareciam todos por cerca de duas horas, prostrados pela fome e pelo calor. Em uma semana estava pronta a urdidura para transformar o fio bruto nas redes que me haviam embalado a infância e cuja doçura em nada denunciava o esforço sobre-humano e a dor que custavam.
Às mulheres cabia a estranha dança para mover os enormes teares, prodígios de marcenaria, encaixes perfeitos, sem uma única peça de metal, apenas suportes, traves, cunhas, pentes e liços, chavetas e cavilhas de jacarandá, madeira tanto mais preciosa quanto de mais longe vinha, os pés saltando de um para outro dos quatro pedais que levantavam alternadamente os liços, os braços a lançar as navetas e a puxar o fio, estendendo faixas de cor, a fazer surgir o xadrez das redes que eu tão bem conhecia, feitas berços no alpendre de meu avô, feitas mercadoria nas estreitas ilhas de verdura no meio das avenidas da metrópole, braços tão rápidos que pareciam ser muito mais de dois, transfigurando aquelas sertanejas em deusas indianas.
A cadência para seu trabalho e para o trabalho dos outros vinha do baque ritmado dos liços e dos pés, do assobio das lançadeiras e do rascar dos pentes, que escapava pelas portas e janelas dos quartos de tear que constituíam quase toda a casa de cada família. A melodia, quando havia, era a da cantilena das velhas e das meninas, assentadas em tocos de troncos tortos, à pobre sombra das algarobas, a trançar varandas e punhos para as redes.
Era das mulheres também a tarefa infindável de buscar água potável na única fonte a escorrer, preguiçosa, em oásis com coqueiral, mancha verde à meia encosta da colina que se elevava sozinha na paisagem, assim como a obrigação de controlar o movimento do burro a mover a nora para fazer subirem os alcatruzes de barro do fundo de um poço estreito, trazendo a água salobra, único bem que lhes dava fielmente aquele fundo de mar há milênios esvaziado. O canto sob as algarobas era sinal de que já estavam os potes cheios, as cabras amarradas a algum esqueleto de arbusto, o fogo aceso sob os telheiros entre as casas e os currais, moído o milho e consumido o cuscuz da madrugada, o feijão a ferver nos caldeirões de barro enegrecido, ou sinal de que já se haviam esvaziado os pratos de sua parca mistura de feijão com farinha, talvez enriquecida por laivos de sabor da carne de um preá ou de uma rolinha, saídos do bisaco de algum vaqueiro. Aquelas tarefas também eu tinha de aprender a cumprir.
Uma mudança brusca nos ruídos e movimentos deste ônibus obriga-me a abrir os olhos e divisar, pela janela, uma casa isolada à beira da estrada, amplamente iluminada, luz elétrica em abundância. Passamos diante dela em marcha lentíssima por causa dos buracos que reaparecem no asfalto, até há pouco liso como novo. Posso ver quase tudo lá dentro, mais coisas, muito mais coisas do que gente: sofás e poltronas forrados de plástico, imitando o mau gosto exibido pela televisão a despejar sua luz azulada e sons estridentes em alto volume, chego a ouvir daqui, competindo com o ronco do ônibus velho, a geladeira encimada por um pano de crochê e um ajuntamento heteróclito de bibelôs e garrafas com rótulos novos e brilhantes, a porta forrada de bugigangas imantadas, nas paredes, três ou quatro quadros grandes com paisagens de neve, do Arco do Triunfo, de uma choupana nórdica à beira de um riacho com roda-d’água, daqueles que se vendem de porta em porta em nome de uma beleza melhor e mais rica, estrangeira, os famigerados racks com aparelho de som, uma porta, cortina de náilon rosa-neon arrepanhada de lado, que revela parte do quarto onde pende acesa uma forte lâmpada, deixando-me ver um ângulo da cama coberta com colcha de babados, almofadas de falso cetim, um bicho de pelúcia e duas enormes bonecas louras, metade de um armário de aglomerado, novo em folha, revestido de fórmica branca e espelhos, tudo como se vê nos panfletos anunciando as eternas pro moções de mercadorias de pacotilha a infestar qualquer cidade. O sertão não é mais sertão e ainda não virou mar. Fecho os olhos e minha memória recupera e estiliza a beleza despojada daquele meu outro sertão.
Desde quando, sem que eu me desse conta, as casas sertanejas encheram-se de trastes e abandonaram aquela estética do essencial, minimalista, diriam hoje, que me encantava na minha casinha e em todas as outras de Olho d’Água?
Quando eu terminava a ingente faina de preparar a refeição e de lavar minha panela, meu prato e minha colher com areia e dois canecos d’água salobra, escondia-me no quarto — na camarinha, ensinaram-me a dizer — onde à noite armava minha rede de dormir, mas àquela hora quase inteiramente vazia de objetos, e esperava o momento do retorno ao trabalho. Nenhuma janela, a estreita porta fechada por uma cortina improvisada com um fio de arame e uma velha e desbotada rede de punhos mutilados, as paredes alvejadas a argila branca, insuportavelmente claras durante as manhãs. Excesso de branco, no começo do dia, mas banido quando o sol ultrapassava a cumeeira da casa e se enchia o quarto de uma penumbra alaranjada, cor de deserto, trazida pela luz oblíqua filtrada pelas telhas tortas, a cor que me surpreendera no Saara. Esse chão de terra batida tornava-se uma duna do meu próprio deserto.
Era a hora do grande calor e eu não podia dormir, como faziam os outros. Então armava meu banquinho de vaqueiro, um exíguo triângulo de couro curtido cujos ângulos encaixam-se nas pontas do pequeno tripé articulado, belo engenho sertanejo, tão simples e harmonioso. Antes de sentar-me, fazia minha mão, ressecada e gretada, deslizar pelo couro macio e luzidio e recebia dele uma qualidade que restaurava alguma coisa do frescor da minha antiga pele. Esses gestos já haviam ganhado, para mim, um valor ritual, como os gestos de quem desenrola e estende seu tapete de oração antes de curvar-se em direção a Meca. Como no meu primeiro entardecer nesse lugar, encostava-me à parede caiada, olhava o vazio e esperava perceber o absoluto.
O ônibus arranca de novo, ganha velocidade, a casa iluminada vai já desaparecendo do meu campo de visão quando, de relance, reconheço Fátima, que chega à janela, seu costumeiro vestido de flores desbotadas, o lenço branco na cabeça, a face serena, os braços fortes, inteiramente incongruente com este cenário cheio dos badulaques de outro mundo. Não pode ser a mesma mulher de quarenta anos atrás… Estou a ver visagens, benignas, porém, como só em sonhos.
Lembro-me, no meu primeiro encontro com aquele povo, em torno das banheiras fumegantes: assim que respondi mais uma vez “Maria, meu nome é Maria”, ouvi “Eu sou Fátima”. Havia uma única mulher a remexer uma caldeira de tinta, entre os homens mudos. Socorreume, com solidária coragem falou comigo, explicou-me cada coisa que eu via, pegou-me pela mão e me levou a ocupar seu posto enquanto ia olhar seu fogo, seu feijão, seus meninos, abriu um espaço para mim entre aquela gente que não me havia chamado, não precisava de mim. Um lugar fora de lugar, como o dela, no qual seríamos duas a receber no rosto o vapor ardente subindo da tina, a tingir o fio como um homem, os braços dela fortes como os deles, os meus, por certo mais jovens, incapazes de mover o peso das meadas no mesmo ritmo, quase inúteis para sustentar longamente o esforço que só a vergonha de desistir me fazia aguentar. Deus do céu! Já não posso mais, já não respiro, já não enxergo nada, ajuda-me, meu Deus! O calor, o peso, a vergonha, a humilhação. Salvaram-me as mãos de Fátima, soltaram o bastão das minhas mãos dormentes, enlaçaram-me a cintura e me conduziram para debaixo da algaroba à sua porta.
Encontrei ofício e família naquele canto escondido. Podia ficar, preenchida de estranha euforia, e, subitamente livre de uma espécie de cegueira frente ao desconhecido, comecei a ver cada um, cada coisa, cada movimento na sua unidade e seu sentido. Pelas mãos de Fátima cheguei ali de verdade.