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Somos quatro em casa. Durmo muito tarde porque sou insone. Às vezes, só consigo descansar depois das quatro da manhã. Às seis já estou de frente para o espelho fazendo a barba. Do canto do olho, noto Letícia em seu sono profundo, aos poucos voltando para a consciência. Até eu terminar de fazer a barba, ela vai acordar, se espreguiçar, me desejar bom dia, reclamar da dor nas costas, espirrar três, quatro vezes, reclamar da poeira desta parte da cidade. Vou ouvi-la, sorrir, me desculpar por não conversar porque estou fazendo a barba. Vou soprar-lhe um beijo e ela vai me sorrir de volta.
Conheci a Letícia na faculdade. Fizemos alguns períodos juntos, mas não éramos amigos. Uma noite, durante uma festa, levei um fora e acabei ficando com ela. Na verdade, não levei um fora; fui rejeitado. Levar fora é comum a qualquer homem, era o que o pai sempre nos disse, aos três irmãos. Crescemos entendendo que as mulheres vão nos humilhar, vão nos escolher, que devemos ter sucesso para ter a chance de sermos escolhidos pelas mais bonitas, mais inteligentes, mais ricas. Levar fora faz parte da vida de um homem. A rejeição é outra coisa. Rejeita-se alguém pelo que é ou deixa de ser, e levar fora vai mais na linha do ter ou deixar de ter.
No meu próprio silêncio, uma história se formava. Antes de a Letícia entrar na minha vida, eu estava apaixonado, entregue, rendido. A Letícia veio, então, em boa hora. Me tirou de um rolo que crescia na cabeça. Me fez entrar na linha, deixar aquele amor desesperado para outra ocasião. Uma paixão daquelas não daria certo, era exagerada, um erro.
Todos os predicados possíveis eram encontrados na Letícia. Eu nunca teria oportunidade melhor e depois de um ano juntos, pedi ela em casamento. Ela tinha trinta. Eu tinha vinte e nove.
Quem mais ficou feliz com a chegada da Letícia foi a mãe. Depois, o pai. Meus irmãos também se interessaram pela possibilidade de a Letícia ter um monte de amigas feito ela. Mas não tinha. Letícia era e sempre vai ser diferente, única. Nosso casamento é para sempre.
Quando nosso primeiro filho nasceu, eu e Letícia combinamos de ela ficar em casa e cuidar do bebê que logo teve um irmão. Letícia deixou a carreira de advogada e foi ser mãe. Ela sempre foi dessas que acredita que não é possível estar em um lugar, se estiver em dois ao mesmo tempo. Para mim, uma ótima solução. Eu sempre ganhei muito dinheiro. Dinheiro do trabalho, dinheiro da família, dinheiro nunca faltou. Letícia nunca reclamou de ser mãe e dona da casa. Sempre tivemos uma vida que pouca gente tem: não brigamos, saímos para jantar nos melhores restaurantes da cidade, vamos ao cinema, ao teatro, temos uma biblioteca ampla e lá ficamos boa parte do fim de semana juntos, o roçar dos ombros, às vezes os cotovelos, a música de fundo. São provas do nosso amor.
De fato, nosso casamento é praticamente perfeito. Nossos filhos são saudáveis, são lindos e inteligentíssimos. Estão agora com dezenove e vinte anos. Saem muito nos finais de semana, têm um grande e leal círculo de amigos. Letícia e eu estamos bem, fazemos exames regulares com os melhores médicos da América Latina. A vida não tem como melhorar. Nas repetidas noites de insônia, imagino, em histórias mirabolantes, alguma bomba caindo no nosso telhado, furando a casa, nossos corpos explodindo e se transformando em pó em questão de segundos. Ou talvez um silêncio revelado, algum sigilo submerso, fossilizado, que se manifesta.
Não penso tanto na rejeição que sofri antes de começar a namorar a Letícia. Todos os dias, invisto alguns minutos no carro, no metrô, no escritório tentando me esquecer daquilo.
Gustavo, meu filho mais velho, às vezes, puxa conversa querendo saber de antigas namoradas, quer saber quem eu fui antes de ser pai, antes da Letícia. A minha resposta é a mesma ao Lucas, o mais novo que também tem uma grande curiosidade em me conhecer. Mas não há nada a saber. O que quer que tenha acontecido antes de Letícia, não era importante. Nunca fui tão feliz na vida quanto com a mãe de vocês. Imaginem. Qualquer outra vida possível teria sido infeliz se é com esta aqui que me sinto pleno, um homem de sorte, concordam?
Lucas, outro dia, trouxe a namorada. Uma moça muito bonita, bem nascida, bem criada, estuda Letras, quer ser tradutora e escritora. Pensei, mas não cheguei a comentar, que era uma pena, mas ninguém é perfeito. Ainda assim, muito agradável, trazia posições políticas neutras, nunca ofenderia esquerda ou direita. Gustavo não suportava a moça. Meu filho mais velho tem imensa paixão por política e, como resultado, é um radical de esquerda. Não brigamos ou temos discussões mais acaloradas, mas com o irmão, às vezes se desentende. Gustavo costuma dizer que a moça, Valentina, se não é nem de esquerda e nem de direita, é porque é de direita. Não gosta do sorriso sempre sob controle, não gosta do bom comportamento. Gustavo é uma força. Rapaz de muita inteligência, mas sinto que existe nele alguma coisa velada, uma espécie de tristeza, não sei bem o que é. Às vezes, me lembra eu mesmo quando moço. Como se algo não se encaixasse na sua personalidade. É uma bobagem, mas me dá essa impressão de deslocamento. Também como eu fui, Gustavo é muito discreto com suas relações. Não nos apresenta suas namoradas – e sabemos que teve várias.
O melhor amigo é um rapaz da comunidade, poeta. É negro, algo que incomoda Letícia, que precisa se explicar com as amigas. Gustavo é muito diferente. É a nossa ovelha negra. Uma hora ele entra nos eixos.
Quando Gustavo era criança, vivia brincando com o filho da Angélica, a nossa ajudante aqui em casa. Mesma idade. O menino, feito o amigo recente de Gustavo, também era negro. Na época em que brincavam, eu e Letícia achávamos bom expor as crianças a outra realidade, a se misturarem um pouquinho e sair um pouco da redoma de vidro que sempre nos cercou. Dar às crianças um pouco de vivência. O Gustavo acabou se afeiçoando de mais ao Bruninho. Faziam tudo juntos. Nas festas de aniversário aqui no prédio era um transtorno: a primeira fatia de bolo ia sempre para o filho da empregada. Para o Lucas, nada. Depois veio a in conveniência e o estresse de ter que levar o Gustavo nas festas de aniversário do Bruninho na favela, que hoje trocou de nome, mas continua sendo a mesma calamidade. Eu e Letícia subíamos o morro só para levar o Gustavo, que era uma felicidade só. Angélica ficava meio sem lugar com a gente lá e até dizia que podíamos ir embora que ela tomava conta dos meninos. Mas Letícia tinha muito medo de sequestro. Ficávamos todos lá, entre as pessoas que nos olhavam com muita desconfiança como se fôssemos algum tipo de problema. Chegamos a convencer Angélica a fazer as festinhas do filho aqui no condomínio, no salão gourmet, na brinquedoteca. De repente, até a piscina os moradores concordariam em liberar. Foi uma vez para nunca mais. Só compareceram o Gustavo, o Lucas e o amiguinho do Lucas. Ninguém da comunidade veio. Angélica acabou dando outra festa na semana seguinte já que o menino ficou triste com a ausência de tanta gente. Eu e Letícia ficamos surpresos. Imaginamos que o prédio fosse lotar daquela gente lá do endereço da Angélica. Se não viessem por amizade ao menino, viriam pela curiosidade de ver um dos melhores condomínios da cidade. Ninguém.
Já estavam os dois virando adolescentes e a Letícia começou a se incomodar. Pensou em mandar a Angélica embora, mas não conseguiu ninguém que se dispusesse a trabalhar as horas longas que a nossa fiel ajudante trabalhava. Angélica foi ficando, Bruninho foi crescendo e já era praticamente da família. Gustavo não largava o menino. Emprestava livro para ele ler, começou a ensinar inglês para o amiguinho. Eu tive uma conversa com Gustavo para ele parar de colocar o rapaz para sonhar. Até roupa o Gustavo dava de presente para o menino. Letícia separava sacolas e sacolas de roupa velha para passar para Bruno, e Gustavo se ofendia, dizia que ele não era sem teto, sem roupa, sem amor, sem inteligência. Dizia até que era igual a nós. Gustavo sempre teve esses rompantes, essa paixão, esses excessos. Eu avisei que, não ia demorar, o rapaz ia começar a querer frequentar faculdade, ser médico, advogado. Já o Lucas sempre teve a cabeça no lugar. Nunca se envolveu com o Bruninho. Era muito educado, mas sempre manteve a distância necessária. O Gustavo é que é meio diferente.
Foi no dia da inscrição para os exames universitários.
Gustavo foi com Bruninho fazer a inscrição. O rapaz negro com aquela questão de cota, aquele absurdo todo. Enfim, parece que era direito dele. Naquele dia, só Gustavo, graças a Deus o Gustavo, voltou para casa. A polícia deu uma batida num grupo de jovens que estava fazendo uma balbúrdia na rua, falando alto, rindo, atrapalhando a ordem. Muitos eram gente feito Gustavo. Mas tinha um amontoado feito o Bruninho também. A confusão foi tanta que a polícia, para manter a calma, acabou atirando naquela desordem toda. Uma pena aquele acidente, a bala dentro do Bruninho. Gustavo ainda está sob um terrível trauma. Temos sorte de ele poder se tratar com os melhores psicanalistas da cidade. A Angélica a gente precisou dispensar. Coitada, já não sabia o que era açúcar e o que era sal. Chorava muito quando via o Gustavo, também embrulhado em sombra, pelos corredores da casa. Nós entendemos o sofrimento da coitada, mas precisamos de ajuda. A Letícia não dá conta de tudo sozinha numa casa deste tamanho e a presença da Angélica estava atrapalhando o Gustavo a se recuperar do abalo.
O acidente com o Bruninho já tem uns dois anos. Gustavo ainda não toca no assunto. Tem lá no quarto dele uma foto dos dois escalando uma montanha em Minas Gerais. Deve ter mais fotos em algum canto, mas não vou procurar, deixa o rapaz.
Fora essa pedra no nosso caminho, a nossa família é, tenho até certo receio em dizer isso, um exemplo. Temos apoio e respeito mútuos aqui em casa. Venho conversando com a Letícia que talvez Gustavo deva ir fazer um Mestrado na Europa. Poderia ir passar um ano ou dois na Inglaterra. Temos amigos por lá que podem nos ajudar, caso ele precise de referência. Acho que sair do Brasil seria bom para o nosso rapaz. Não que o país seja um lugar ruim. Pelo contrário. Até um certo tempo atrás o que havia de roubalheira e corrupção nesta terra, nem vou dizer. Finalmente quebraram o encanto e assumiu um homem que traz um frescor, um sangue novo, cujos valores são mais sólidos, cristãos. Sim, é um sujeito polêmico. Há, às vezes, uma autenticidade que choca. Mas é um líder que é transparente. Nunca escondeu o que pensa. Valorizo demais essa honestidade.
Acho também que faria bem para o Gustavo respirar outros ares, parar com essas conversas e companhias comunistas. Quem sabe uma namorada inglesa? Letícia ficaria tão feliz. Imagina os netinhos bilíngues, loirinhos, que gracinha. Talvez Gustavo esteja deprimido porque Lucas já está com a Valentina há anos e, pelo jeito, vai ter casamento. Conhecemos os pais da moça, gente muito boa. Letícia ganhou uma amiga. A mãe de Valentina, a Vanessa, coordena uma caridade que distribui sopa aos pobres e sem teto da cidade. Uma vez por mês, Vanessa vem aqui buscar a Letícia e as duas vão lá, distribuir comida, conversar com os pobres, antes de correrem para o clube do vinho que frequentam. É uma correria, mas dá tempo. Tenho imenso orgulho do bom coração da minha mulher. Ela faz a parte dela. Não é como esses sujeitos que ficam teorizando. Letícia vai lá e faz. Conversa e até abraça aqueles pobres coitados uma vez por mês, enche a barriga deles de sopa. E ainda tem que aguentar o Gustavo rir da cara dela, chamando a própria mãe de dondoca, dizendo que bom mesmo seria se ela ajudasse esse pessoal a ler, a encontrar casa e trabalho. Discutem, às vezes. Visões muito diferentes.
Quando tocamos no sucesso de Lucas e Valentina, Gustavo sai, entra no quarto, bate à porta ou vai para a rua. O poeta, o negro, amigo dele, parou de vir aqui em casa. Gustavo diz que a amizade continua, que na verdade é ele, o Gustavo, quem tem vergonha da própria casa. O mundo virou de cabeça para baixo. O Gustavo diz que tem vergonha de morar num dos condomínios mais luxuosos da cidade. Eu sempre achei que seria uma boa ideia expor essas pessoas da comunidade à nossa realidade para que tenham ambição na vida. Como tem gente acomodada e ainda nos faz sentir culpa pelo nosso trabalho e bem-estar. Como tem sido difícil viver neste mundo que eu já não entendo.
Fui dormir às quatro. São seis e antes de eu terminar de fazer a barba, minha amada Letícia vai acordar, se espreguiçar, me desejar bom dia, reclamar da dor nas costas, espirrar três, quatro vezes, reclamar da poeira desta parte da cidade. Vou ouvi-la, sorrir, me desculpar por não conversar porque estou fazendo a barba. Vou soprar-lhe um beijo e ela vai me sorrir de volta.
Vamos tomar café sem os meninos, que não dormiram em casa. Ela vai conferir se nada está faltando na minha mala para a minha conferência no Uruguai. São só três noites fora, mas Letícia me abraça e diz que vai sentir minha falta, para eu ligar sempre, dar notícias sempre e trazer para ela alguma surpresa. Gosto muito dessas viagens de trabalho. Tem gente que vai ao psicólogo, tem gente que vai às conferências.
No táxi, a caminho do aeroporto, desembrulho uma balinha oferecida pela motorista. Minhas mãos desenrolam o papel brilhante e encontram outro, um papel fino. Um papel brilhante tão bonito cobre o papel transparente que, de fato, protege a bala. A bala brilha entre os meus dedos que vêm tremendo. Penso que talvez eu morra logo, mas não gosto de pensar em morte antes de pegar um voo. Em vez disso, penso em me esquecer daquela rejeição que sofri antes de conhecer a Letícia. O trânsito está dos diabos. Estamos parados e ainda não deixamos um quilômetro de casa para trás. Eu me distraio olhando lá fora e reconheço o Gustavo. Ele não me vê. Ele está com o tal amigo, o poeta, o negro. Meus olhos baixam até as mãos dos dois, que estão dadas, juntas, apertadas, certamente suadas de um dia de calor como este. Penso nas namoradas dele que nunca conhecemos. Penso nas minhas namoradas antes da Letícia que nunca existiram. Penso que Gustavo e eu não nos conhecemos. Penso no que me perguntam meus filhos sobre quem eu era antes de me casar. Olho de novo para a mão recheada do Gustavo, enrolada com a mão daquele homem. Penso que uma rejeição não é um fora. Olho as minhas mãos ainda trêmulas e vazias.
De Mapas para desaparecer, Nara Vidal, Faria e Silva Editora, São Paulo, 2020