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O homem entrou e ficou parado, olhando: nem uma mesa vazia, o restaurante cheio. Sentiu-se chateado.
Sabia que todo sábado era assim e procurava chegar mais cedo, mas aquele dia houvera um contratempo, e ele se atrasara. Ia ficar sem a sua feijoada só por causa disso? Não era justo, não podia ficar…
Um garçom veio:
– Bom dia, Doutor.
– Como é?… – ele disse, expressando nessas palavras tudo o que sentia.
– A casa hoje está um pouco cheia – o garçom disse, com evidente eufemismo. – Mas se o senhor não se importar de esperar um pouco, deve haver logo uma mesa vagando ali…
– Ficar sem a minha feijoada é que não posso – ele respondeu, categórico.
Ficou então esperando, próximo à porta, o corpo meio empinado para trás, a barriga saliente. Abriu o paletó: a gravata, colorida, sobre a camisa muito branca.
A mão esquerda segurando o cinto e a direita com um cigarro, ele olhava para a rua: já era meio-dia, e o sol estava intenso. Havia uma luminosidade quase excessiva nas coisas. Era pleno mês de dezembro. Já fazia vários dias que não chovia e, segundo a meteorologia, ainda ia demorar a chover.
Tornou a olhar para dentro, ansioso e impaciente. E então se alegrou: pessoas se levantavam numa mesa lá do fundo.
Logo veio o garçom:
– Já tem uma mesa.
– Ótimo.
O homem foi seguindo o garçom e, no percurso até a mesa, inclinou algumas vezes a cabeça, de modo formal e algo solene, cumprimentando algumas pessoas.
Sentou-se, enfim: território apossado – e suspirou contente, estirando as pernas.
– Que tal está a de hoje, Fernando?… – perguntou, com familiaridade, ao garçom, que acabava de limpar a mesa.
– Está muito boa, Doutor.
– Está mesmo? – perguntou, mais por um hábito de perguntar do que por dúvida.
O garçom pendurou o pano no braço dobrado:
– O senhor vai começar com o quê? A de sempre?
– É; mas me traz da boa, hem?
– O senhor é da casa, Doutor.
O homem agradeceu com um sorriso.
– E traz uma cervejinha também?
– Também.
– Casco escuro.
– Claro?
– Claro?
– Estou dizendo que claro que é casco escuro.
– Ah – o garçom riu; – achei que era para trazer casco claro.
– Não – ele disse.
– Eu estranhei – disse o garçom; – o senhor sempre pede para trazer casco escuro.
– Pois é – disse ele.
O garçom então se foi.
O homem descansou os braços sobre a mesa, encostou-se confortavelmente à cadeira e olhou para todo o salão: sentia-se feliz, verdadeiramente feliz, e mais ainda se sentiu ao ver algumas pessoas recém-chegadas esperando lá na poreta, como ele minutos antes esperava. Agora estava ali, tranquilo, sentado no meio daquele barulho de conversas e risadas, esperando sua deliciosa feijoada, aquela feijoada que ele vinha, religiosamente, todos os sábados comer. Não havia nada melhor.
Lá vinham as bebidas.
O garçom pôs na mesa o cálice de pinga; a cerveja; o couvert. Abriu a garrafa de cerveja, guardando em seguida a tampinha no bolso do avental branco. Encheu o copo: a cerveja espumou.
O homem provou a pinga.
– Que tal? – perguntou o garçom.
– Divina.
– É a melhor que nós temos aqui, no momento.
– Excellent; de primeira.
– Mais um minutinho só, e vem a feijoada – disse o garçom, tornando a ir-se.
O homem comeu uma azeitona preta. Depois comeu uma lasquinha de rabanete. Passou manteiga num pedaço de pão. Tomou então um bom gole de cerveja: “Eh…”, gemeu de prazer.
Mais um pouco se passou, e então viu o garçom, lacaio real, transportando por entre as mesas a bandeja com a preciosa feijoada.
O garçom se inclinou e pôs a bandeja no canto da mesa, começando então a esvaziá-la.
A feijoada fumegava, cheirosa, na tigela de cerâmica; o homem ficou com a boca cheia d’água.
– Ai, que perfume… – ele disse, torcendo as mãos.
– Mais uma cachacinha? – o garçom perguntou, reparando no cálice vazio.
– Pode trazer, pode trazer mais uma cachacinha.
O garçom se foi.
O homem não avançou: conteve-se, um instante ainda, para conferir as coisas. “Vejamos”, disse para si mesmo, como se estivesse lá no escritório, conferindo uma fatura: “arroz, couve, farinha, molho…” Tudo ali.
Mergulhou então a colher na tigela, deu umas mexidinhas e serviu-se, com muita educação. Depois, um pouco de cada outra coisa, em proporções iguais. Tomou um gole de cerveja, olhando vagamente ao redor. Pegou o garfo, ajeitou a comida e levou-a à boca: “Hum… Que delícia…”
Outra garfada. Mais um gole da cerveja: “Ah…” Um pezinho: seus dentes e língua limparam-no rápido, ficando só o osso, roliço; soltou-o no prato, um batido na louça. Molho ardido: pimenta malagueta, duas – por isso. A cervejinha apagando o incêndio, esfriando a garganta abaixo – que bom. Um arroto vinha subindo: “Oah…” Sentiu-se aliviado; agora comeria outro tanto.
Foi enchendo de novo o prato.
Chegou o outro aperitivo:
– Demorou um pouco – se desculpou o garçom.
– Não tem problema: chegou na hora.
– O senhor quer que dê uma esquentada na feijoada? Fica mais gostosa…
O homem concordou; o garçom pôs a tigela na bandeja.
– Mais uma cerveja?…
O homem olhou a garrafa: quase vazia.
– Pode vir.
O garçom se foi.
O homem tomou um gole de pinga. Excelente…
Sentia calor: tirou o paletó e pendurou-o atrás, na cadeira.
Namorou o prato, pôs mais uma colherada de molho, e atacou. Assim prosseguiu, num ritmo contínuo, só interrompendo para tomar novos goles da pinga.
Ao acabar, limpou, com o resto da cerveja, o gosto na boca. Encostou-se então à cadeira e respirou fundo: sentia-se cheio, quase empanzinado. Comera demais. Se desse um arroto; um arrotozinho só… E então sentiu que ele vinha, ia chegando: “Oahhh…”, arrotou com vontade.
Depois ainda se ergueu um pouco na cadeira e – “ah…” – acabou se se aliviar. Agora sim, sentia-se outro; sentia-se ótimo. Mas não comeria mais. Ou comeria? Talvez mais um pouquinho; só mais um pouquinho…
Olhou na direção da cozinha, procurando o garçom; teve dificuldade em ver as coisas, sua vista não se firmava. “Será que eu já estou grogue?”, perguntou-se, com uma repentina e esquisita vontade de rir. “É, acho que eu estou mesmo grogue”, concluiu, e então começou a rir, sacudindo-se todo, como se aquilo fosse a coisa mais engraçada do mundo.
O garçom, vindo de outro lado, surgiu à sua frente com a bandeja. Ele ainda ria, enxugando os olhos com o lenço, e o garçom, vendo-o assim, riu também. Pôs na mesa a feijoada e a nova garrafa de cerveja, recolhendo em seguida a garrafa vazia.
O homem curvou-se sobre a tigela, como se fosse enfiar a cara ali dentro.
– Ai, meu deus, esse cheiro…
– Mais uma pinguinha?
– Você quer me matar, Fernando – lamuriou o homem. – Eu vou me queixar para a polícia que você está querendo me matar…
O garçom riu.
– Que se pode fazer? Traz, traz quantas pingas houver – e deu uma gargalhada. – Eu vou me empanturrar, Fernando; eu vou em empanturrar!…
O garçom se afastou, rindo, conivente com um casal de jovens que, da mesa vizinha, observava o homem e também ria.
– Ai ai – disse o homem, falando sozinho, – eu estou bêbedo, completamente bêbedo, não resta a menor dúvida…
Pegou a colher para se servir – mas, em vez de servir-se, largou de repente a colher, ergueu-se meio aos trambolhões e foi em direção ao mictório.
Esforçava-se por se equilibrar e não esbarrar nas mesas – os olhos do casal de jovens e de outras pessoas seguindo-o, na expectativa de algum acidente: mas nada houve.
Quando ele voltou, minutos depois, veio num passo mais firme, mas seu rosto tinha uma expressão de torpor e alheamento.
Sentou-se e pôs no prato, de um modo muito pausado, a feijoada e os outros ingredientes. Tomou um gole de cerveja e recomeçou a comer.
Comia devagar, demorando-se, enquanto mastigava a olhar para a mesa – como se estivesse num lugar muito calmo e silencioso. E quando o garçom chegou com a nova pinga, ele apenas ergueu o rosto para dizer um obrigado, sem nada da efusão de antes.
– Mais alguma coisa? – o garçom perguntou.
– Não – ele disse; – é só.
Lá fora o sol quente entrava pela tarde, a rua já com pouco movimento, as pessoas recolhidas às casas.
Dentro do restaurante as mesas vazias e os garçons se movimentando rápidos no salão, procedendo á limpeza. Só uma mesa ocupada, no fundo: lá dela, o homem nem parecia acompanhar aquele trabalho, mas com um ar distraído.
Quando o viu virar a garrafa toda, seu garçom foi até ele:
– Mais uma, Doutor?
– Não – ele disse: – essa foi a última.
Estava com a cara amarrotada. O garçom o observava.
– O senhor está bem?
– Na minha idade é difícil a gente estar bem – ele respondeu. – E… eu comi demais. Eu não devia ter comido tanto assim…
– O senhor toma um Sonrisal.
– Isso não adianta.
– Sonrisol é muito bom – disse o Garçom, com sincera ênfase.
– O problema não é o estômago – explicou o homem.
Ergueu os olhos, desalentados, para o garçom:
– Alma – disse o homem.
O garçom ficou olhando-o: gostava daquele homem, que era rico e importante, mas o tratava sempre com bondade, e teve pena de ele sentir-se assim. Queria fazer ou dizer algo que o melhorasse, mas não sabia o quê. Não era a primeira vez que acontecia de ele se queixar ao fim de uma feijoada; procurava então dizer-lhe algo que o animasse, e isso às vezes fazia efeito. Mas agora não via o que dizer. A coisa parecia ser mais profunda. O homem estava muito abatido.
– Talvez seja o fígado – tentou ainda; – o senhor toma uma Xantinon B-12, ela faz efeito em pouco tempo. É um ótimo remédio.
O homem mexeu a cabeça, desconsolado:
– Não há remédio para isso, meu filho.
O garçom então se calou, não sabendo mais o que dizer.
O homem olhou para as mesas vazias no salão e o sol quente lá fora – e todo aquele sábado que tinha pela frente, sem nada para fazer.
– Sabe? – disse, erguendo novamente os olhos para o garçom: – Eu me sinto miserável. É assim que me sinto: miserável.
De A feijoada e outros contos, copyright © 2014 de Luiz Vilela