Nota del editor:
Es un honor para LALT publicar un fragmento exclusivo de la traducción al inglés de Sombras de reis barbudos de José J. Veiga, traducido por Rahul Bery, como la primera entrega de una serie permanente dedicada a la literatura brasileña. Presentamos este fragmento en inglés y portugués.
Capítulo 1: A chegada
Está bem, mãe. Vou fazer a sua vontade. Vou escrever a história do que aconteceu aqui desde a chegada de tio Baltazar. Sei que esse pedido insistente é um truque para me prender em casa, a senhora acha perigoso eu ficar andando por aí mesmo hoje, quando os fiscais já não fiscalizam com tanto rigor. Talvez seja mesmo uma boa maneira de passar o tempo, já estou cansa-do de bater pernas pelos lugares de sempre e só ver essa tristeza de casas vazias, janelas e portas batendo ao vento, mato crescendo nos pátios antes tão bem tratados, lagartixas passeando atrevidas até em cima dos móveis, gambás fazendo ninho nos fogões apagados, se vingando do tempo em que corriam perigo até no fundo dos quintais.
Pensei que ia ser fácil escrever a nossa história, estando os acontecimentos ainda vivos na minha lembrança. Mas foi só eu me sentar aqui, pegar o lápis e o caderno, e ficar parado sem saber como começar. Mamãe diz que não vai ler os meus escritos porque não tem cabeça para leitura e também porque já sabe tudo melhor do que eu. Está claro que é mais um truque para me deixar à vontade. Ela é esperta, pensa em tudo. Preciso ter muito cuidado para não deixar o caderno esquecido por aí, principalmente se eu resolver falar no meu procedimento em casa de tio Baltazar.
Será que eu estaria aqui escrevendo se tio Baltazar não tivesse vindo para cá com a ideia de fundar a Companhia? Não estou pensando que a culpa foi dele; a ideia era boa e entusias-mou todo mundo. Mas a história que vou contar começa mesmo com a chegada de tio Baltazar. Quem podia imaginar naquele tempo de alegria e festa que um sonho tão bonito ia degenerar nessa calamitosa Companhia Melhoramentos de Taitara? Pobre tio Baltazar, como estaria sofrendo se ainda vivesse. Acho que foi pensando no sofrimento dele que mamãe não chorou muito quando finalmente recebemos a notícia.
Eu tinha onze anos quando tio Baltazar chegou da primeira vez. Estava casado de novo, mas veio sozinho e com fama de muito rico. Relembrando aqueles tempos, meu pai me disse que depois de alguns dias aqui tio Baltazar pensou em desistir da Companhia e voltar. Agora eu pergunto de novo: se ele tivesse voltado naquela ocasião, será que ainda estaria vivo? E se ele não tivesse fundado a Companhia, será que teríamos passado por tu-do o que passamos? Mas perguntar essas coisas agora é o mesmo que dizer que se o bezerro da vizinha não tivesse morrido ainda estaria vivo. Estou aqui para falar do que aconteceu, e não do que deixou de acontecer.
Tio Baltazar. Um nome, a fama, muitas fotografias — assim era que eu o conhecia. Parece que ele achava absolutamente necessário a pessoa tirar retrato todo mês, ou toda semana. Fre-quentemente mamãe recebia uma fotografia dele tirada em es-túdio de retratista ou ao ar livre por algum amigo.
* * *
Lembro‑me especialmente de uma, tirada ao volante de um lustroso carro esporte que os entendidos aqui diziam ser de fabri-cação italiana e muito caro: tio Baltazar aparecia com o braço esquerdo descansando na porta do carro, o cabelo repartido no meio, camisa de gola aberta dobrada sobre o paletó xadrez igual aos que os artistas de cinema estavam usando, piteira com cigarro na boca, sorriso de rico no rosto simpático. Essa fotografia, com dedicatória para mamãe, fez o maior sucesso entre nossos amigos, além de vê‑la muitos queriam mostrar a outros. Entre zelosa e vaidosa, mamãe emprestava; mas se a pessoa demorava a devol-ver, eu recebia a missão de ir buscá‑la, um documento daquela importância não podia passar muito tempo em mãos profanas.
Se estou aqui para contar a verdade não posso esconder o meu desapontamento quando vi tio Baltazar descendo do carro em nossa porta. No primeiro momento pensei que fosse outra pessoa, um amigo ou empregado. O cabelo era bem mais ralo e não estava mais repartido ao meio, acho que porque essa moda já tinha passado. E o rosto não era tão moço como o das fotografias. Mas o que me decepcionou mesmo, até me assustou, foi a falta de um braço. Onde estava o braço esquerdo que descansava na porta do carro na fotografia famosa? Vendo‑o sair do carro ajudado pelo chofer, a manga vazia do paletó metida no bolso, a bela imagem de um tio campeão em muitos esportes virou fu-maça ali mesmo. Eu já tinha visto pessoas sem perna, sem braço, sem mão, até um homem sem nariz eu vi de joelhos ao meu la-do na igreja na Semana Santa: mas não eram meus tios. Fiquei tão decepcionado que fui me esconder no porão e nem apareci para o jantar. É difícil entender, mas pensando no meu procedi-mento naquele dia parece que eu acusava tio Baltazar de ter cortado o braço só para me humilhar diante de meus amigos.
Mas ninguém se preocupou muito com a minha falta, só ouvi mamãe me chamar uma vez; e eu mesmo fui ficando curio-so de saber o motivo do desinteresse por mim. Se a minha falta não era notada, então alguma coisa muito importante devia estar acontecendo lá em cima enquanto eu fazia papel de morcego escondido no escuro. Resolvi sair antes que ficasse mais difícil.
Primeiro passei na cozinha para comer alguma coisa en-quanto estudava a maneira de me mostrar na sala. Eu estava mexendo nas panelas quando mamãe apareceu para providen-ciar mais café e me apanhou de surpresa.
— Com efeito, Lu — ela disse em tom de quem não está ligando muito. — Seu tio chega e você some. Será que o farran-cho na rua não podia esperar?
Ainda bem que ela pensava que tinha sido o farrancho. Eu já estava achando que era bobagem fugir de tio Baltazar só por causa da falta de um braço. Então quem perde uma perna ou um braço deixa de ser gente? E aquele detetive aleijado que eu no cinema derrotando na briga uma porção de bandidos per-feitos? Pena que eu não tivesse me lembrado desse filme antes.
Mamãe estava me olhando, e eu vi que ela sabia a verdade. Mas em vez de me censurar, ela alisou o meu cabelo e disse:
— Coma qualquer coisa e venha falar com ele. Ele tem uma surpresa para você, está ansioso por saber se você vai gostar. Eu vou dizer que você teve reunião na escola.
Comi depressa, nem toquei na sobremesa. Entrei na sala ainda limpando a boca.
— Finalmente chegou o estudioso — disse tio Baltazar des-cansando o charuto no cinzeiro. — Venha aqui para eu ver você de perto. Mas é a cara do avô, hein, Vi? Nunca vi parecer tanto. Como vai na escola? Boas notas? Estude bastante, mas não se esqueça de brincar também. Quem só estuda e não brinca fica magro e com aquela cara antipática de gênio, e nós não quere-mos isso na família. Não é, Horácio?
A pergunta foi dirigida a meu pai, que fumava calado num canto da mesa. E antes que ele tomasse providência para respon-der, tio Baltazar continuou, tirando um embrulhinho estreito do bolso:
— Eu trouxe isto para você. Veja se gosta.
Mamãe fez sinal para eu abrir o embrulho, meu pai conti-nuava fumando e fazendo força para mostrar indiferença. (Eu ainda não sabia de certas coisas entre meu pai e tio Baltazar.) Retirado o papel, apareceu uma caixinha preta com trinco na tampa. Abri a caixa e não acreditei. Dentro tinha um relógio dourado com pulseira dourada deitadinho num berço de velu-do, relógio de verdade.
Experimentamos o relógio no meu pulso, tio Baltazar me ensinou a graduar o tamanho da pulseira, ficou frouxa mesmo na graduação menor. Mamãe ia dizendo que eu esperasse uns dois meses ou três — eu não quis ouvir, disse que estava bom assim mesmo e me afastei, com medo que me tirassem o relógio. Até meu pai, que parecia longe de tudo, riu e disse que duvidava que eu tivesse paciência para esperar dois ou três meses.
Olhando o relógio em meu pulso, ou sentindo o peso dele quando abaixava o braço, eu achava que alguma coisa não estava certa, um objeto tão valioso não podia ser meu de verdade, uma desconfiança que durou muitos dias. Mas desde o momento em que tio Baltazar colocou o relógio em meu pulso eu esqueci que ele era aleijado. Quando ele descansou o relógio na mesa e trabalhou com uma mão só para encurtar a pulseira, ele estava era mostrando a facilidade de se fazer esse trabalho.
Mamãe ficou desapontada quando soube que tio Baltazar tinha alugado quartos no Grande Hotel Síria e Líbano e não ia se hospedar em nossa casa. Mas quase todo dia ele vinha almo-çar ou jantar, e nos domingos me levava para passear de automó-vel, eu ia sozinho porque mamãe foi uma vez e enjoou e meu pai nunca podia ir, quando não estava cansado, estava com dor de cabeça ou tinha alguma visita a fazer, acho que nem uma vez ele entrou naquele carro.
Um dia tio Baltazar viajou para buscar tia Dulce, e a segun-da chegada foi outra festa ainda melhor, porque durou muitos anos.