Nota do Editor: Este texto está disponível na versão original em português e na tradução em inglês. Clique aqui para ler em inglês.
***
Longe, aqui: Poesia incompleta 1998-2019. Maria Esther Maciel. Belo Horizonte: Quixote + Do Editoras Associadas, Tlön Edições, 2020. 324 páginas.
No ano de 2020 em que todos tivemos nossas rotinas afetadas por uma pandemia que trouxe não só uma doença física, mas causou impacto psicológico em todos, em que a descrença se alastra do campo político à humanidade de modo geral, a poesia resiste, trazendo alento. Nesse cenário, Maria Esther Maciel nos recorda da poesia presente no cotidiano, nas pequenas coisas, ao lançar o livro Longe, aqui: Poesia incompleta 1998-2019), pelas editoras Quixote + Do e Tlön. O volume reúne poemas das obras O livro das sutilezas (2019), O livro de Zenóbia (2004), Triz (1998). A edição também apresenta novos poemas, inaugurando uma nova fase na sua produção poética. Inclusive, a partir de Triz complementado de novos poemas (1990-2001), podemos pensar em um livro que se atualiza como outro, conforme é comentado no próprio livro de Maciel.
Natural de berço fértil no cenário cultural brasileiro, Maria Esther Maciel (1963) vive em Belo Horizonte. Poeta, cronista, ensaísta, ficcionista, a mineira possui publicações nacionais e internacionais, bem como recebeu diversos prêmios, como finalista do Prêmio Jabuti em Teoria/Crítica Literária com o livro A memória das coisas, em 2005, e finalista na categoria romance, em 2009. Ademais, Maria Esther Maciel atua como professora titular de Teoria da Literatura comparada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e como professora colaboradora da pós-graduação em Teoria e História Literária da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). A escritora possui doutorado em Literatura Comparada pela UFMG, com Pós-Doutorado pela Universidade de Londres na área de Cinema e em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo.
A primeira parte do livro Longe, aqui contempla O livro das sutilezas no qual o jardim invade as páginas com a delicadeza da comparação de uma “Alcachofra” com um livro no qual as pétalas se chamam capítulos e se despetalam como páginas. “E ao fim do último capítulo eis que de repente surge a inesperada delícia: um botão tenro e carnudo —o coração da flor que vira fruta viva” (p. 27).
O apartado “III Hildegarten” oferece ao leitor uma recriação de verbetes do livro Physica de Hildegard von Bingen, com ilustrações de Julia Panadés. Encontramos arruda, Malva, Canela, Cânhamo, Urtiga, Arnica, Lavanda, Mirra, Trevo, Cominho. Mas o que vemos não é um dicionário etimológico, a organização e apresentação dos elementos funciona como um modo de quebrar as regras desses textos para apresentar um universo poético que vai além, com uma pitada de ironia, quem sabe. Tudo com a sutileza de quem se mune com elegância do cotidiano para trazer beleza aos dias. Como se “Toda vez que o bem-te-vi aparece ela escreve um verso que aos poucos cresce até virar (ao que parece) um poema” (p. 29).
O próximo livro continua no botânico poético, inclusive com ilustrações de Elvira Vigna. O livro de Zenóbia mistura poesia e prosa, e nessa escrita ficcional supera-se os limites da linguagem de cada gênero. Zenóbia nasceu na Fazenda Palmyra (1922), morou em Belo Horizonte, onde se tornou bióloga, com especialização em Botânica. Quando volta para sua cidade natal, passa a se dedicar ao cultivo de ervas medicinais —informações presentes nas notas biográficas, ao fim da obra. A partir dessa personagem somos levados a acompanhar as tramas de uma vida corriqueira, da sua infância, passando pelos amores, à idade madura com seus 82 anos e óculos. Porém esse romance poético, ou melhor, essa poética narrativa, leva o leitor a redescobrir o maravilhoso no cotidiano. Como aquele abraço que nos faz sentir infinitos (p. 129). Ou aquela imagem potente, “Sonhou com um pássaro sem asa” (p. 107). Assim, como qualquer história pessoal, passa por perdas que orbitam a memória. O trágico e o poético, a realidade e o sonho definem a vida de Zenóbia.
“As receitas de Zenóbia” retratam a alquimia poética da cozinha com suas receitas e recomendações, “Antes de começar a comer, não diga nenhuma palavra” (p. 153). Essas receitas tampouco são apenas para alimentar o corpo, lógico que não, afinal “Dizem que nenhum destino é tão insuportável que uma alma razoável não encontre pelo menos uma coisa para consolo. Às vezes um bolo de amêndoas ou uma salada de endívias e sálvia nos salva dos piores desgostos. Ou até mesmo um prato bem simples, como o de berinjelas ao forno” (p. 155).
E se O livro de Zenóbia é de difícil classificação, nele são apresentados os cadernos de Zenóbia, intitulado “As horas felizes”, com lista de coisas, como lista de ervas daninhas, de peixes perplexos, de cidade raras, temperos e ervas de cheiro, aves em perigo, orquídeas e bromélias, palavras preferidas. Essas listas brincam de forma quase lúdica com as formas de classificação que conhecemos e originalmente estavam nos anexos da obra na sua primeira edição.
O livro Triz foi escrito sob a intensidade da perda do pai da poeta, ganhando o peso de uma homenagem a ele. Sem cair em sentimentalismos fáceis, a obra apresenta o sofrimento da perda de alguém importante. O vazio da perda não é preenchido, mas caminha melancolicamente junto na trama dos versos.
Sua obra reunida dialoga com vários autores —Lygia, T. S. Eliot, Éluard, Mallarmé, Octavio Paz, entre outros— revelando a erudição da autora e convidando o leitor a um jogo literário aberto. Somando às diferentes vozes da literatura universal, Longe, aqui revela diferente “eus” em uma escrita múltipla. A complexidade dos “eus líricos” compartilham sua força para iluminar estes dias sombrios. Igualmente, a poeta mostra não se prender a regras estagnantes e apresenta uma esfera poética híbrida. O mundo está cheio de possibilidade, assim como de possibilidades poéticas.
E por isso tudo, e por tudo mais que não conseguimos contemplar aqui, é que o livro possui uma beleza sutil. Entre temperos, plantas, listas de palavras de preferidas, os poemas nos convidam a apreciar essa dimensão total da vida a partir das pequenas coisas.
Elys Regina Zils