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O maior fenômeno literário brasileiro recente é Torto Arado, romance de Itamar Vieira Junior, sucesso de crítica e público1. Ambientado em uma comunidade quilombola da Chapada Diamantina (Bahia), a narrativa acompanha duas irmãs, Bibiana e Belonísia, que se envolvem num acidente que retira de uma delas a capacidade de comunicação. Seu pai, Zeca Chapéu Grande, é um líder religioso e comunitário.
A história apresenta a condição de exploração do trabalho análogo à escravidão, o racismo e a opressão das mulheres numa sociedade patriarcal. Mas também há espaço para a fruição poética e o otimismo, especialmente associados ao misticismo, que abre espaço para a linguagem poética e afirma o culto afro-brasileiro do jarê como um elemento unificador que promove a solidariedade entre os personagens.
Torto Arado dialoga com a tradição da literatura brasileira, especialmente a segunda e terceira fases do Modernismo, o regionalismo e o romance neorrealista. É curioso notar que os próprios paratextos da obra derivam da intertextualidade: o título vem de um verso de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, e a epígrafe é de Lavoura Arcaica de Raduan Nassar: porém, em ambos casos, os trechos são ressignificados, assumindo um sentido oposto ao do contexto original.
O livro também dialoga com o chamado realismo mágico latino-americano. Podemos pensar em Pedro Páramo, obra em que a comunicação com os espíritos também está entranhada na estrutura narrativa, ou ainda em Cem anos de solidão, romance em que as gerações familiares se sobrepõem de forma análoga à de Torto Arado.
O autor explica que a sua proposta era falar de “vidas negras”, em especial das personagens femininas negras, as pessoas mais vulneráveis dentro da sociedade racista e patriarcal. Já os personagens brancos de Torto Arado são diretamente descendentes do (não tão distante) passado colonial. As elites brancas continuam a submeter as populações afrodescendentes a um regime de servidão análogo à escravidão: os donos da fazenda Água Negra simplesmente “passaram a chamar os escravos de trabalhadores” (III-1)2. Torto Arado mostra a luta dessas populações pela sobrevivência e sua redescoberta e identificação enquanto populações quilombolas. O livro nasce da experiência do autor como funcionário público do Instituto Nacional de Colonização e de Reforma Agrária (INCRA) e como acadêmico das áreas de Geografia e Antropologia, pesquisando sobre as populações quilombolas da Chapada Diamantina.
Como solução aos problemas apresentados ao longo do romance, a luta política aparecerá na parte final, quando a narrativa adquire um acentuado tom didático, quase panfletário. Um dos problemas debatidos é o da legitimidade do uso da violência na resistência política. É claro que a violência por parte dos patrões em Torto Arado é notória, desde a época em que os escravizados tinham suas mãos decepadas como punição, ou eram amarrados a um tronco e surrados. Enquanto o personagem do líder comunitário Zeca Chapéu Grande recusava o confronto direto com os patrões, a nova geração parece menos disposta à conciliação. É o que fica visível em passagens como a do arrombamento dos portões do cemitério local, contrariando a interdição de enterrar seus mortos dentro da propriedade. Porém, por fim, a solução para a resistência não é encontrada na violência, mas sim nas estratégias de organização para a reivindicação de direitos. O próprio autor, como funcionário público, é defensor deste arcabouço legal de proteção aos descendentes de escravizados, estabelecido pela “Constituição cidadã”.
Um ponto fraco do romance ao tratar da luta política é recair em certo tom paternalista: o personagem de Severo, marido de Bibiana, “viajava para encontrar o povo que lhe ensinava as coisas, sobre a precariedade do trabalho, sobre o sofrimento do povo do campo” (II-14). É possível reconhecer aqui um discurso datado (que outrora guiou a literatura engajada de esquerda) de pretensão de “conscientização do povo”. Mas é um equívoco imaginar que os explorados precisem de uma explicação externa para tomarem consciência da precariedade e do sofrimento a que são submetidos.
De qualquer forma, ao longo do romance, aparece de maneira equilibrada a relação entre a cultura letrada e o saber tradicional dos quilombolas (simbolizado no jarê), sem que um saber seja renegado em benefício do outro. Esta síntese está representada na personagem da “professora que ensinava sobre a história do povo negro, que ensinava matemática, ciências e fazia as crianças se orgulharem de serem quilombolas” (III-10). Obviamente, todo romance é representante da cultura letrada, especialmente Torto Arado, escrito a partir de uma pesquisa acadêmica. É importante que uma obra com personagens “subalternos” já seja considerado um clássico, destinado a integrar o cânone literário.
As irmãs Bibiana e Belonísia inventam uma linguagem gestual, o que remete à invenção estilística literária. Assim como uma irmã se torna porta-voz da outra, o autor fala pelos quilombolas seus personagens. Quando as irmãs se separam, a escrita passa a ser a única forma de expressão daquela que perdeu a fala. Seu hábito de escrever espelha a escrita do próprio romance, e se reflete no seu apreço pelo verbo “arar”, sinônimo de cultivar. A prosa poética de Torto Arado é um terreno cultivado pela lavra do autor, por caminhos tortuosos.
O livro adota uma linguagem assumidamente brasileira, o que é notável, por exemplo, na colocação pronominal. Mas, a despeito de seus traços regionalistas, o livro agradou os leitores de Portugal, onde foi inicialmente publicado, após receber o Prêmio literário LeYa. O fato é que Torto Arado não recorre tanto a vocábulos regionais, nem tenta mimetizar a fala local, o que certamente o faz menos árido para o leitor não-brasileiro, e contribui para sua “traduzibilidade”: aliás, seus direitos de publicação já foram vendidos para uma dezena de países, incluindo os Estados Unidos.
O autor anunciou que Torto Arado é o primeiro livro de uma trilogia que escreverá sobre a relação do povo com a terra. É natural que o problema da terra seja especialmente caro a um geógrafo dedicado à reforma agrária, que trabalhou para garantir às populações quilombolas o direito à terra. Sem dúvida, a principal metáfora em Torto Arado é a terra. Símbolo de morte e de vida, é o solo que os descendentes de expatriados africanos aprenderiam a amar e arar, recobrindo a semente “para que o movimento do mundo se encarregasse do resto” (III-13), e também a interpretar: “ Tentava escutar os sons mais íntimos, dos lugares mais recônditos do interior da terra, para livrar o plantio da praga” (III-13). É a terra que os une em parentesco, expresso no romance na relação entre as duas irmãs, e também nas relações filiais estabelecidas dentro da prática religiosa do jarê.
Mas a terra também simboliza a morte. O próprio título da obra vem de um verso sobre morte. Podemos observar que a morte marcou a trajetória de Torto Arado. Enquanto escrevia a obra, o autor recebeu a notícia de que trabalhadores rurais com quem teve contato haviam sido assassinados numa chacina (indício da triste realidade de violência no campo que ainda persiste). Além disso, o momento de alegria pelo recebimento do prêmio LeYa foi sucedido de perto pela morte do pai do autor.
Dentro da obra, como sabemos, é a interdição de enterrar os mortos na terra natal que desencadeia o conflito com os patrões: “Se não pudéssemos deitar nossos mortos na Viração era porque, em breve, também não poderíamos estar sobre a mesma terra” (II-19). O livro recorda as “Mulheres que retiravam seus filhos ainda no ventre para que não nascessem escravos” (III-2): paradoxalmente, a dor da perda se mistura à luta pela sobrevivência, o que também enche o livro de vitalidade. Belonísia sente seu corpo fértil “como a terra úmida” (II-4). É naquela terra que enterravam os cordões umbilicais de seus recém-nascidos. O nome Bibiana (originado de Viviana) vem do latim “vividus” que significa “vivo”: não por acaso, a personagem exalta a vida sobre aquela terra:
[…] esta terra mora em mim, bateu com força em seu peito, brotou em mim e enraizou. Aqui, bateu novamente no peito, é a morada da terra. Mora aqui em meu peito porque dela se fez minha vida, com meu povo todinho. No meu peito mora Água Negra, não no documento da fazenda da senhora e de seu marido. Vocês podem até me arrancar dela como uma erva ruim, mas nunca irão arrancar a terra de mim (III-7).
Associada à terra, a ambiguidade entre morte e vida está resumida no barro com que construíam suas casas, isto é, no paradoxo de “criar raízes” naquele território sem ter o direito de construir utilizando materiais duráveis como a alvenaria; com o abandono e o tempo, o barro das casas termina por se dissolver e retornar à terra. A mesma ambiguidade permeia outros momentos do romance: é na dor da perda que Belonísia recupera a fala: “em anos, foram os primeiros gemidos que deixei escapar de minha boca mutilada” (II-15) – este murmúrio é também um renascimento, como o choro de um recém-nascido. Esta ambiguidade pode ser encontrada ainda na expressão “rios de sangue”, que primeiro aparece representando o extermínio e, depois, o fluxo sanguíneo vital de um ser que renasce: “era bom estar de novo envolvida nos rios de sangue” (III-14). Morte e vida se alternam em Torto Arado, num ciclo em que avó, filhas e netas se reconhecem – “ela é curiosa como nós éramos” (III-8) – achando “engraçado poder ver a vida se repetir como uma história antiga” (II-14).
O termo genocídio – geralmente utilizado para se referir ao passado – é atualmente evocado também para definir o tempo presente. Os números mostram que a epidemia de Covid-19 mata mais negros e periféricos. Nos tristes tempos que vivemos, marcados pela morte – que em breve terá atingido meio milhão de brasileiros – Torto Arado é uma dose de esperança muito bem-vinda.
Sem dúvida, parte do impacto editorial do livro se deve ao diálogo que estabelece com o momento de retrocesso que vivemos, quando ficam evidentes as cicatrizes do passado escravocrata. Assim como a casa nova construída ao lado da antiga, abandonada até se dissolver – “enquanto fazíamos a nova, deixávamos a antiga tombar ali” (II-11) – também nossa sociedade está sendo construída ao lado das ruínas de um passado ainda visível. Assim sendo, parece significativo que o autor tenha optado por não situar cronologicamente a narrativa de forma clara. A leitura do livro termina com uma nota que desconcerta o leitor: “Esta é uma obra de ficção. Embora inspirada na vida real”. Ainda que o tempo de Torto Arado seja pós-escravista, não há nada que permita afirmar que se trata de um tempo passado e superado.
É triste constatar que todos os problemas retratados no livro têm eco no Brasil atual. O trabalho análogo à escravidão ainda é uma triste realidade, tanto rural quanto urbana, e a recente reforma trabalhista não parece ter contribuído para melhorar a dignidade dos trabalhadores. Torto Arado nos chama a atenção para a persistência de relações de trabalho análogas às do período da escravidão, como a de “diarista de serviços domésticos, cuidando de crianças” (III-4), e remete à (ainda atual) luta por moradia e por terra, pelo “direito de morar” (III-13). Lembra ainda do racismo e do “preconceito no posto de saúde, no mercado ou nos cartórios da cidade” (III-10). A relação entre a política de repressão às drogas e o extermínio negro também é apontada: “mesma desculpa de drogas para entrar nas casas, matando o povo preto […]. Nós sabíamos que não era troca de tiros. Que era extermínio” (III-5). Há ainda em Torto Arado uma defesa da causa ecológica: um exemplo está no caso de um rio que antes tinha abundância, “Mas a mineração trouxe muita areia para o leito” (III-6).
O livro começou a ser escrito há mais de duas décadas, portanto, não é possível entender sua gênese como uma reação ao contexto político recente. Porém, no período em que o autor retoma e termina Torto Arado, já vivíamos o período de crise institucional que culmina com a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência em 2018. É emblemático que o autor de Torto Arado tenha recebido o prêmio LeYa exatamente nos dias entre o primeiro e o segundo turno das eleições. O presidente eleito é conhecido por suas falas preconceituosas em relação aos quilombolas e às mulheres, e é abertamente contrário à paridade de salários. Ele já declarou que “as minorias têm que se curvar para as maiorias”, e vocaliza certo movimento evangélico que persegue os cultos afro-brasileiros. É também crítico da luta ecologista e defende a mineração predatória.
Apesar dos pesares, Itamar Vieira Junior é otimista, e tem esperanças de que o Brasil superará em breve esta fase. Este otimismo transborda em Torto Arado, ancorado na ideia de solidariedade (que no livro aparece associada ao jarê). O sucesso editorial de Torto Arado é um ótimo sinal para o Brasil atual: um raio de esperança de que no futuro sejam superados de vez o passado escravista e o presente nefasto.
1 Vieira Junior, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019.
2 As citações de Torto Arado se remetem a cada uma das três partes do romance (I, II e III) e, em seguida, ao número do capítulo. Os comentários do autor vêm da entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 15 de fevereiro de 2021.