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Herança
Meu avô é um velho inconveniente que faz todas as perguntas que não devia fazer nos eventos familiares.
Além de fazer perguntas medonhas, ele me encara e comenta que eu engordei, afirma que minha amiga é sapatão, que eu nunca vou arrumar emprego com o curso que faço na universidade, mas tudo bem, porque sou um fracassado igual ao meu pai e fala isso dando aquela risadinha sarcástica de quem está determinado a se meter.
Meu avô consegue azedar qualquer reunião familiar. Ele começa discussão, ofende. Zomba, magoa. A todos.
Ele tem olhinhos azuis, cabelo todo branquinho, é gorducho e caminha pulando. Quem olha de longe vê um velho fofo. Quem convive de perto está louco pra ir ao seu funeral.
Ele maltrata a vovó. Chama de lesada, define as roupas que ela deve usar e onde pode ir. Se e quando pode ir. E com quem. Joga o prato no chão se a comida não está do jeito que ele quer. Ela não reage.
Ele espancava os filhos quando pequenos – meu pai e meus tios. E agora que os filhos estão adultos, sempre se dirige a eles com sarcasmos ou palavrões. Ele nunca nos abraçou. Me chama de Breno e meu nome é Bruno. A Carla ele apelidou de Saco de Banha!, ela é a minha prima complicada com o controle do peso. Já tentou se matar, é depressiva. Minha tia fica arrasada. Meus primos gêmeos ele chama de “os dois” e outro primo, o Gil, de “o menino”. A minha prima Cássia, eita!, essa ele ignora. Tem tatuagens e piercings, para ele não existe. Ela diz – Olá, avô! Ele vira a cara.
Estamos na delegacia. Meus pais, tios, tias, primos, primas e vovó. Depois desse ridículo e desprezível almoço de natal. Vovó é a única que chora e repete Tadinho, tadinho.
Meu avô nunca mais escarnecerá de ninguém. Foi esfaqueado, enquanto dormia, após o almoço, com a faca nova de cortar o peru. Durante o almoço ele ofendeu, zombou e xingou a todos.
Impressionante sua capacidade de humilhar, menosprezar e detonar. Meu avô era brilhante na maldade.
Somos muitos e somos todos suspeitos, mas o delegado já ganhou uma graninha e semana que vem todos ficarão sabendo da tentativa frustrada de assalto. E comentarão, impressionados, da valentia do meu avô, que sozinho no quarto, reagiu. O resultado final foi que, infelizmente, ele não resistiu aos ferimentos na luta feroz, corpo a corpo com o marginal.
A vida seguirá. E a maldade da minha família, que era só do velho, agora está em todos nós.
Desculpas
Sou preto e sou velho. Diferente da maioria dos pretos no Brasil, sou rico. Moro num condomínio sofisticado, num bairro de brancos que acham muito esquisito a minha família preta morar ali.
Tenho setenta anos e pratico muitos esportes. Gosto especialmente de corrida.
Dia desses fui correr até a beira da praia. Na segunda quadra após o condomínio, passei em frente ao posto de gasolina. No momento em que passei, acontecia um
assalto.
Dois dentes quebrados, três costelas fraturadas, as maçãs do rosto raladas, nariz sangrando, braço esquerdo luxado. Cusparadas na cara, tapas na orelha, vários socos no estômago.
Uns brutamontes me agarraram, me esfregaram no chão de asfalto e me levaram para a delegacia como suspeito.
Meu advogado-branco veio me socorrer. Sou médico, sou dono de uma clínica, tenho três especializações, dou aulas, tenho vários livros publicados, falo quatro idiomas.
Até agora ninguém me pediu desculpas. Ficam repetindo que eu sou preto, nem pareço um velho e estava correndo, como iam saber que eu não era um marginal?
Lucros
Tenho setenta e sete anos e estou muito gordo. Tenho problema de coração, muitas varizes, asma e pressão alta.
Semana passada aconteceu uma catástrofe. Quebrei a balança na farmácia da rua de casa. Vinha da pastelaria, onde tinha comido cinco pastéis de queijo, quatro de carne e tomado duas garrafas de coca. Da calçada avistei a balança nova, tão bonita. Comia a última batata do saco grande de Rufles quando entrei para checar meu peso.
Um moleque filmou tudo com um iPhone. Está no YouTube.
Viralizou.
O título do vídeo é Velhão quebra-tudo. A trilha sonora é um funk. A cena repete, repete. Um vexame. Meus filhos e seus amigos viram, meus netos e seus amigos viram. Meus vizinhos e seus amigos viram. Todo mundo que eu conheço viu. Tem mais de cento e cinquenta mil visualizações.
Nas montagens do vídeo, além da balança da farmácia, eu quebro a ponte Rio-Niterói, quebro o Palácio da Alvorada, quebro o Cristo Redentor e mais um monte de lugar famoso.
Em frente ao supermercado uns garotos fizeram uma selfie comigo. Na padaria fui recebido com assobios, aplausos, gargalhadas e gritos de Viva o velhão! Fiquei famoso com essa exposição humilhante. Meu barbeiro nem cobrou meu corte de cabelo.
Paguei o prejuízo da balança ao seu Osório, dono da farmácia.
O garoto do iPhone filmou o momento do pagamento e a minha saída da farmácia, comendo um pacote médio de amendoim. O título deste vídeo é Velhão paga-tudo. Na montagem eu pago os salários atrasados dos professores, pago as aposentadorias atrasadas dos velhotes, pago a dívida externa. A trilha sonora é um pagode. O vídeo do quebra-tudo me rendeu um corte de cabelo gratuito, assobios, aplausos e vivas!, espero que o vídeo do paga-tudo me renda muito mais.