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A impressão de que os gaúchos – gentilício de quem nasce no Rio Grande do Sul, caracterizado na figura do homem do campo – são brancos, introspectivos, consumidores de mate e de churrasco, indivíduos distantes emocionalmente por conta da imensidão do pampa e frios como o clima do inverno, percorre as demais regiões brasileiras, chegando alguns a destacarem nossas grandes semelhanças com os países platinos e nosso afastamento do que se considera elementos de brasilidade: trópicos, sol, calor, floresta amazônica, carnaval, gente na rua. A tradição normatizada a partir de 1948, com a organização do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), foi uma tentativa deliberada de afastamento de indígenas e negros da formação cultural do RS; a construção do tradicionalismo gaúcho foi motivada por jovens estudantes, filhos de estancieiros da região da campanha, que invocavam o resgate da vida rural transportada para a capital gaúcha Porto Alegre (uma jovem cidade que completará 250 anos em 2022). Os elementos culturais advindos das tradições africanas e indígenas foram preteridos nessa “invenção da tradição gaúcha” no estado em que, segundo pesquisas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), se encontra o maior número de terreiros – espaços de práticas de tradições africanas – do Brasil. Seguidores, principalmente, em duas orientações: umbanda (religião brasileira com influências africanas, indígenas e europeias) e batuque (vertente do candomblé, com algumas variações), os negros gaúchos contam com mais de 50 mil terreiros onde expressam suas crenças e mantém vivas as narrativas de força e resistência de suas origens africanas. Por que, então, ocultar a presença negra e celebrar a branquitude sulista?
Negar a presença africana é uma forma de mascarar a violência cometida contra os negros escravizados na região. Na tradição gaúcha, o imigrante é apresentado como protagonista do desenvolvimento através da mão-de-obra livre e não escravizada: famílias europeias, em sua grande maioria, hoje nomeiam grande parte das empresas multinacionais de tecnologia e produção. No entanto, relatos comprovam a chegada dos primeiros africanos em 1717 para o trabalho nas charqueadas, propriedades rurais onde se produzia o charque, carne salgada exposta à desidratação, para exportação. Para além da violência física das torturas, o clima também castigava os corpos negros: frio, umidade, intensificados no abate do gado, mal cheiro, presença de animais peçonhentos, um lugar totalmente insalubre onde escravizados eram enviados para trabalhar até a morte. Outro fato caro à memória dos gaúchos é a Guerra dos Farrapos que resultou na declaração de independência da República Rio-grandense. Com a promessa da abolição da escravatura caso o Rio Grande do Sul obtivesse a separação do Império Brasileiro, negros lutaram bravamente durante os dez anos de disputa que finalizou com a rendição dos líderes sulistas diante da falta de recursos financeiros para prosseguir no conflito. No Massacre de Porongos, último combate, o batalhão dos Lanceiros Negros lutou até a aniquilação total. Os negros sobreviventes voltaram a ser escravizados e, após a abolição da escravidão no Brasil em 1888, jogados às margens do sistema sem absolutamente nenhum projeto político de integração das comunidades negras à nova configuração social.
A literatura sul-rio-grandense, portanto, como reflexo do processo histórico da região, apresenta em seus contextos narrativos os fatos mencionados: o povoamento através da imigração alemã e italiana, as disputas por territórios com a banda castelhana, as negociações políticas que formaram o povo gaúcho são temáticas recorrentes. Um dos escritores mais conhecidos é Erico Verissimo (1905 – 1975) e sua obra O tempo e o vento, série literária dividida em O Continente (1949), O Retrato (1951) e O Arquipélago (1961) que narra a saga familiar dos Terra-Cambará desde a ocupação do Continente de São Pedro (primeiro nome dado ao estado) até o ano de 1945. Da mesma forma, a literatura de autoria negra também irá abordar essas temáticas, porém, destacando a figura do negro na formação cultural da região e trazendo para o debate o apagamento dos elementos afro na conformação da tradição gaúcha, escancarando o racismo vigente através de ações que objetivaram silenciar as vozes negras que colocavam o dedo na ferida do honrado homem (branco) do campo, merecedor de todas as glórias por conta de seu trabalho incansável. Na intenção de apresentar algumas vozes negras de expressão, faço o recorte de quatro escritores negros do e no Rio Grande do Sul: os precursores Maria Helena Vargas da Silveira e Oliveira Silveira e os contemporâneos Paulo Scott e Jeferson Tenório.
As escritas afro-gaúchas estão inspiradas na ancestralidade, naqueles que vieram antes; nesse sentido, destaco Maria Helena Vargas da Silveira (1940-2009) e Oliveira Silveira (1941 – 2009). A trajetória dos precursores é bastante parecida: nasceram em cidades do interior do RS (onde a crueldade do racismo pode ser mais intensa), migraram para a capital Porto Alegre, foram estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, participaram de movimentos negros, publicaram por editoras independentes, são conhecidos e exaltados por sua luta antirracista além de terem sido professores da educação básica. Helena do Sul, como passa a ser conhecida a partir de 2005 quando ocupa cargo público na Secretaria de Educação Continuada, Diversidade e Inclusão (Secadi) do Ministério da Educação e a Fundação Cultural Palmares em Brasília, capital do país, foi uma das precursoras da lei de ações afirmativas que objetiva a criação de cotas para ingresso de pessoas negras em concursos públicos. Nascida em Pelotas, cidade cujo crescimento econômico se deu por conta das charqueadas, foi escritora, educadora e pedagoga. Publicou 11 livros que transitam pelos gêneros literários romance, poesia, contos, crônicas e textos satíricos, entre eles, o romance É Fogo (1987), Meu nome pessoa. Três momentos de poesia (1989) e os contos de Odara. Fantasia e realidade (1993) onde registra de forma irônica (uma marca em sua escrita), no texto ficcional, as experiências de mulheres negras, recompondo, dessa forma, a memória coletiva através das narrativas de negritudes por elementos e segmentos de memórias ancestrais, de tradições e cultura afro-brasileiras do passado histórico. O carnaval e os desfiles das escolas de samba da cidade de Pelotas também são temáticas recorrentes em seus registros. No conto “Despatrimônio”, do livro Odara, a imagem de abertura ironiza os fatos históricos brasileiros que enalteceram as figuras de heróis brancos e invisibilizam os demais partícipes da construção da nação:
A sala é secular. Uma sala social de nobres marginais, oprimindo marginalizados nobres. Lúgubre, infestada de mofo, acolhe nefasta arte. Nas paredes, quadros funestos respiram a poeira de pretensa eternidade de ranço cultural.
Na escuridão do tétrico ambiente, os espelhos sem brilho, com nuances espectrais maquiadas de suor, lágrimas e sangue. São iaôs prisioneiros, negros imobilizados na moldura deprimente de horrendo quadro chamado História. No alto, a coroa; no chão, os pelourinhos, esboços desumanos, ensaios sem vida.
A sala é secular. Acolhe nefasta arte. (Silveira, 1993, p.8)
O poeta Oliveira Silveira, de Rosário do Sul, cidade distante 500 km de Porto Alegre, localizada no coração do pampa gaúcho, próxima à fronteira com o Uruguai, estabeleceu-se como cidadão porto-alegrense quando foi estudar o Ensino Médio e, logo, o curso de português-francês no Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi um dos fundadores do Grupo Palmares, aliado ao Movimento Negro Unificado na capital do RS, e idealizador do dia 20 de novembro como celebração do Dia da Consciência Negra, referenciando a morte do grande líder quilombola brasileiro Zumbi dos Palmares. Sua incursão pela universidade o fez dialogar com poetas de outras longitudes: o potente Roteiro dos Tantãs (1981), cujo título faz alusão ao som concernente ao tambor, ponto em comum como elemento cultural em países que receberam comunidades negras, faz esse percurso pela literatura, história, geografia e cultura americana. O poema Haiti traz uma epígrafe de Aimé Césaire (1913-2008) do visceral Cahier d’un retour au pays natal (1939) na qual relata que foi nessa colônia que, pela primeira vez, a negritude se levantou e se acreditou enquanto humanidade. No poema Em Cuba, dialoga intertextualmente com Nicolás Guillén: “Em Cuba/um afro coração/nos versos de Guillén; tantã latejando a América”. O último verso exemplifica o sentimento de americanidade do poeta que, identificando-se com o cubano, um dos poucos escritores negros referenciados em manuais de literatura hispano-americana em circulação pelo Brasil, que também trouxe a oralidade na composição de seus poemas: o tantã lateja, bate, cria memória, permite o prosseguimento das tradições culturais de matriz africana e reafirma as origens que os brancos tentaram fazer com que fossem esquecidas. Em Platinos, as palavras milonga, tango e malambo (ritmos musicais muito comuns no sul) fazem o eu lírico se aproximar dos irmãos do outro lado da fronteira, com quem compartilha o frio branco, seja no clima, seja nas relações com pessoas brancas: “Milonga, tango, malambo/familiares/essas palavras/quentes/me agasalham”. Também publicou os livros de poemas Banzo, saudade negra (1969), Décima do negro peão (1974), Anotações à margem (1994) entre outros tantos que retomam as origens africanas e criticam o tratamento dado aos negros na região sul, evidenciado no poema Obrigado, minha terra, publicado em Pêlo escuro – poemas afro-gaúchos (1977): “Obrigado charqueada/por minhas feridas salgadas (…) Obrigado pelo preconceito/com que até hoje me aceitas/Muito obrigado pela cor do emprego/que não me dás porque sou negro (…) Agradeço de todo coração/e sem nenhum perdão”.
Na atualidade, dois escritores que utilizam Porto Alegre como espaço em seus romances recentemente contam com publicação por editoras de grande circulação: Paulo Scott (Marrom e Amarelo, Alfaguara, 2019) e Jeferson Tenório (O avesso da pele, Companhia das Letras, 2020, já em processo de tradução para o francês e o italiano e com publicação em Portugal). O primeiro aborda a questão do colorismo, de quem é ou não considerado negro/a e suas frustrações e privilégios em um país mestiço e ainda em uma região de grande imigração europeia, debatendo as contradições da lógica binária pois, dependendo do lugar em que se está, a cor da pele será determinante. Essa temática também é abordada no texto de Tenório em que o narrador, em segunda pessoa, relata a vida do pai professor e as diversas abordagens policiais que sofrera apenas por ser um homem negro. No caso de Tenório, que nasceu no Rio de Janeiro e adotou Porto Alegre como sua cidade, em seus romances anteriores O beijo na parede (2013) e Estela sem Deus (2018), através da narração de protagonistas adolescentes, aborda o abandono pela família e pelo Estado que acaba jogando as crianças negras para a vida nas ruas, sem controle, sem orientação, buscando um sentido em suas vidas, amparadas em livros de literatura encontrados “ao acaso”. As personagens de Tenorio são flaneurs negros que circulam pela cidade, mas, ao contrário dos clássicos (Leopold Bloom em Ulisses, de James Joyce ou Horacio Oliveira em Rayuela, de Cortázar, por exemplo) não podem estar despreocupados, pelo contrário: a atenção de uma pessoa negra, ao andar pela rua, deve estar redobrada, pois são vários os fatores de risco para essa população.
É interessante notar que grande parte de escritores negros que escrevem a partir do sul se dedica à poesia: Ronald Augusto, Eliane Marques, Lilian Rocha, Ana dos Santos, Duan Kissonde, Marlon Ramos, Richard Serraria, Fernanda Bastos, o coletivo Sopapo Poético, entre tantos outros e outras que, infelizmente, não temos espaço para citar, trazem ancestralidade, memória, reflexão social através da participação ativa dos negros na construção cultural do Rio Grande do Sul. Tomo de empréstimo de Oliveira Silveira o título e o subtítulo desse ensaio: “Anotações à margem”, como já referenciado, é o título de um de seus livros de poemas, e o subtítulo, artigo publicado na Revista Ponto e Vírgula em 1995, na intenção de fazer a história e a literatura afro-gaúcha transcenderem o espaço marginal e serem lidas para além das fronteiras regionais, situando as comunidades negras e seus elementos culturais como componentes efetivos da cidadania sul-rio-grandense.