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Querida Rosângela,
Estou há duas semanas dentro de casa. Se saí à rua duas ou três vezes, foi muito. E em todas elas para fazer o que ninguém mais aqui em casa faz: padaria, supermercado, farmácia. O que mais me tem impressionado é o medo que sinto das pessoas. Eu jamais havia sentido isso assim. Já tive medo das pessoas de outras formas. Tive medo da violência do meu pai, da violência de um assalto, da violência de um marido, medo de falar, medo da dor física e da dor moral, medo do julgamento alheio por isto ou aquilo, medo de uma banca de concurso, medo do que iriam me dizer sobre meu desempenho, medo de um chefe grosseiro, mas nunca tive medo das pessoas e de sua pele, de suas mãos, de seus espirros, de sua aproximação, de quando me entregam um cesto com leite, um pacote de pão, uma flor, uns livros, umas chaves, uma maquininha de débito. Tenho sentido isso sempre e com tanto pesar… que tenho medo de nunca mais me livrar desta sensação. Medo de que este vírus se transforme em um fantasma que acompanha as pessoas em suas vidas, daqui para frente. Isso me tem angustiado e provocado uma espécie de vontade de nunca mais sair.
Fico pensando na dor desses enfermos de doenças muito contagiosas, doentes que tinham de ser isolados do convívio, que eram internados para morrer, que não podiam ver ninguém. Doentes dessas doenças que unem dor e solidão, além de preconceito. Doentes que ninguém quer tocar, ver, se aproximar. Fui fazer uma pergunta a uma atendente e ela dava passos para trás. Fui atender ao carteiro no portão, hesitei para pegar a caneta que ele me estendia com uma mão envolta em luvas; depois de assinar a entrega, cheguei a sentir minhas mãos arderem, embora não fosse isso; fui comprar arroz, tomates, num mercadinho de corredores razoáveis, e todos andávamos uns entre os outros como ímãs de mesma polaridade, como uma dança de se desviar, como um jogo de cercas invisíveis. Um passo meu adiante, um passo do outro atrás. E se alguém ali espirrasse, tive medo de linchamento. Coisas em que nunca pensei.
Este é outro ponto, minha amiga: não gosto de sair de casa. Há anos sofro com a necessidade de sair para o trabalho, para viagens (que também eram trabalho, antes de a ciência ficar quase impedida no país e bem antes do vírus), para festas, para qualquer coisa. Uso uma agenda resumida em que marco as atividades em quadradinhos, todos muito escritos e rabiscados. Risco os dias que passam como os detentos de filmes. Gosto dos dias que passam, como se eu fosse chegar a algum tempo melhor, não sei. Nada me indica isso, mas eu espero, talvez. E nesses quadradinhos escrevo meus compromissos com siglas, em letra miúda, com abreviaturas. Marco os que consegui cumprir, sem mais delongas. Mas os dias em branco, esses em que não há compromissos, esses que me parecem meus, são os meus queridos. Protejo-os como uma leoa ameaçada e nem sempre sou bem-sucedida. Protejo-os de um bombardeio, de uma enxurrada, de um ataque. Sempre me incomoda a maneira como dispõem, os outros, do meu tempo. Sempre. E há anos venho tentando me mover nessa agenda como num jogo de xadrez que não sei jogar ou que sempre perco. E, além disso, vou olhando os meses adiante e pensando nos dias em branco, que, na verdade, são aqueles que me deixam me ocupar de mim, de minhas coisas, dos meus gostos, do meu sono, dos meus livros, da minha escrita. Você me entende? E consegue escrever neste confinamento? Se temos dias em casa, por que escrever ficou um pouco difícil? Você tem sentido o medo e a tensão do problema avassalarem sua casa e sua alma? Tem sentido que está no mundo, mesmo que quisesse estar num livro ainda por escrever? Tem sentido que a Organização Mundial da Saúde tem muito a ver com seus planos e versos? Tem sentido que a humanidade é mesmo uma só, ainda que me custe acreditar que alguns da minha espécie são mesmo humanos? Tem sentido nojo de certos políticos e empresários, mais do que o normal? Tem desejado que o vírus seja inteligente na seleção de quem irá infectar, embora você saiba que é apenas um delírio de terror?
Por estes dias de confinamento, não senti essa dificuldade dos que gostam da rua, dos mais sociáveis, dos mais jovens, dos que procuram o bar ou a festa. Não me sinto especialmente presa. Mas algo me desconcentra e incomoda muito, de maneira muito diferente de quando posso simplesmente querer minha casa. E é o medo. O medo de sair, se eu quiser ou precisar; o medo das pessoas que vêm com entregas; o medo de algo que não vejo e nem sei se já se aproxima; e a liberdade precária dos que estão premidos pelo Estado. É diferente, minha amiga, poder e não poder.
Tenho ouvido falar de Brasília. As notícias daí vinham por alguns motivos, agora vêm por outros. A doença está aí, como está aqui. E fico assistindo à TV e notando uma mudança das caras dos personagens. Alguns começam a aparecer mais, com seus vocabulários de outras áreas, as coisas que normalmente não ouvimos. E sumiram alguns assuntos e emergiram outros, e um outro assunto ocupa quase tudo. Nem consigo ficar muito tempo diante da tela porque o medo de uma transmissão televisiva passa a fazer parte da minha imaginação. Imagine aí um vírus digital, um vírus transmissível entre pessoas que se vêm por meio de telas, um vírus que exterminasse esta humanidade como a conhecemos. Talvez este de agora já tenha feito isso.
Ouvi e li projeções otimistas sobre o que vamos aprender depois desta situação estranha. Não consegui ficar otimista, nem mesmo com os argumentos articulados dos honoráveis analistas e comentaristas. Não sei se podemos aprender algo de bom. Já fomos piores? Ou isto é a arrogância de sempre? Li um texto de um especialista, desses com Ph.D não sei onde, bolsista do CNPq, etc., em que ele apontava as coisas que esta pandemia mostra ou deveria mostrar a nós, à humanidade; em como estamos entrelaçados, os que têm e os que não; em como o bem comum está acima do que pensamos ser individual. Foi bonito ler. Foi lindo. Talvez eu tenha investido ali uns dez minutos, numa espécie de oásis. Abaixo do texto, no entanto, os comentários de mais de cinco dezenas de pessoas imperdoáveis. Em sua maioria, pessoas que destilam ódio, idiotia, violência, desprezo pelas outras, etc. etc. essas coisas que conhecemos bem. São doentes.
Daí meu medo. Medo contínuo, mesmo confinada, na segurança do meu lar – que tem sabão e água, comida, pessoas amadas e amáveis, banho e aconchego. Medo do que já éramos, que me desanimou tanto do convívio geral; medo do que somos e do que estamos fazendo; medo do que voltaremos a ser. Em especial quando ouço áudios de empresários detestáveis, mais desprezíveis do que os outros seres que eles desprezam (seus funcionários? Seus serviçais?), tenho pequenos surtos de vontade de apagar o mundo, sem sofrimento, com uma tecla, ctrl+z, desfazer, não é só apagar, é desfazer.
Pessimista? Não quero que minha carta lhe chegue carreando amargor. É uma confissão, mais que uma transmissão. Hoje, enviei mensagens a algumas pessoas muito queridas. Mensagens de áudio e de texto, pessoas que realmente me preocupam, pessoas que eu gostaria de ajudar ou apenas de saber como estão: dois parentes com quem sinto mais sintonia ou algum traço de certa irmandade; uma amiga no exterior que tenta retornar, muito assustada, claro; um amigo positivo para HIV. Senti em todos eles certa tristeza. Dos que me retornaram áudios, pude ouvir suas vozes meio arrastadas, melancólicas, como que a duvidar que um dia voltemos aos nossos abraços normais. Você sente falta de abraços, Rosângela?
Cresci em um núcleo familiar de poucas demonstrações de afeto desse tipo. Cresci sem muitos toques. Até hoje, nos abraçamos timidamente, meio de lado, sem olhos fixos. Aprendi a abraçar na escola, quando as amizades tinham jeito de parentescos seletivos. De fato, alguns desses amigos daqueles tempos estão em minha vida até hoje (foi para um deles que mandei mensagens agora, por exemplo). Mas abraçar e dar beijos sempre me demandou certo esforço. Medo? Mas depois que aprendi, é difícil desfazer. Tenho usado os pés e os cotovelos até para cumprimentar meu filho! Que é o único ser nesta Terra cuja pele e cujos fluidos sempre me pareceram meus, que nunca me custou abraçar, que me faz sentir a dor deste distanciamento inédito.
Fomos interditados por uma doença, Rosângela? Você conversa com plantas? Animais de estimação? Encontra amigos e amigas por videoconferência? Sente que os dias futuros de sua agenda estão se apagando, esgarçando, embaçando? Já passou por algo assim? E ainda teve de lidar com a imbecilidade humana nos vizinhos individualistas, nos conhecidos financistas e na ameaça dos que nos impregnam com ignorância e vírus, ao mesmo tempo?
Conte-me de você, querida amiga; de Brasília; de algum romance distópico que lhe venha ocupando a mente – seu ou alheio; de seu sono nestes dias de estranheza; de seus desejos para depois desta pandemia; de suas esperanças, melhores que as minhas; de suas providências para depois que a natureza nos puser no devido lugar.
Saudações com os cotovelos, numa carta asséptica
Ana Elisa Ribeiro
Nota: Rosângela é uma escritora de BH e a crônica foi encomendada pela Revista Pessoa, quando a autora era colunista lá, e também foi publicada no livro Nossa Língua & Outras encrencas, da Parábola Editorial em 2023.