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Rosas lilás
Saio de casa com a sensação de que, caso encontre uma flor pelo caminho, e mediante a beleza e a contundência de sua aparência, talvez eu não vá trabalhar e me deixe levar por uma outra atividade: a contemplação.
Chove, tornando a cidade um tanto melancólica e os horizontes meio embaçados. Qualquer um adivinharia um domingo, no entanto, o número correto é dois. O segundo dia da semana.
Passo por entre todo este chão molhado com uma certa delicadeza tentando preservar a boa aparência dos meus sapatos. Jamais confiei em alguém com os sapatos sujos. O guarda-chuva preto envelhecido precocemente por falta de bons tratos protege meus cabelos e a garganta de uma ocasional gripe.
Tento prestar atenção na música do dia, sim, porque caso estejamos atentos, é perfeitamente possível deixar tocar, dentro das nossas cabeças, a música do dia, aquela companheira do subconsciente que traz, como o interior de um biscoitinho da sorte chinês, uma mensagem com total livre arbítrio.
Nenhum sinal de qualquer flor, muito menos de uma rosa. A rádio subconsciente deve ter sido apanhada por alguma interferência consequente da chuva, e não toca absolutamente nada hoje. Um dia pálido, propício a desejos de encontros com rosas lilás.
Rumo ao trabalho. À procura de rosas que jamais apareceram numa segunda feira, sigo. Rosas dificilmente sobrevivem após o assédio de fim de semana dos cães e das crianças no térreo dos prédios da minha organizada vizinhança. Sigo. Com uma estranha forma de contemplar, com a firme convicção de olhar tudo à minha volta. Com uma conhecida esperança. Persistente. Sagrada.
Os sonhos permanecem embora eu não anote todos. Também as tempestades e as crianças famintas por toda parte. Alguns velhinhos continuam fugindo da loucura de suas famílias, frequentando asilos, e praticando diferentes tipos de evasão mental. Nesses asilos, os velhos continuam voltando a um passado, onde com certeza não existiam pitbulls. Onde crianças brincam de bem-me-quer e mal-me-quer. Onde as crianças brincam.
Ainda procuro a tal rosa. Ainda sonho com o instante sagrado em que brincarei de esconde-esconde. Escancararei meu medo e plantarei um jardim de rosas lilás no meu quintal, regadas com parcimônia. Sonharei bem alto. Abrirei a janela. Darei de cara com o sol. Abrirei a janela e darei de cara com a chuva. Abrirei a janela e darei de cara com a lua.
Aqui estou eu. Em meio à minha própria estrada. Contemplo a vida como uma possível história, que um dia contarei aos meus filhos, aos meus cães, à minha menopausa, e às minhas rugas. Rugas com desenhos de rosas lilás, de pétalas, de espinhos, de sapatos limpos, de fiapos de guarda-chuva velho, de manhãs de sol, de pingos de chuva, de banhos de lua, rugas de expressão de uma geração que ainda está a caminho e insistentemente em busca de algo, rugas da geração filtro solar.
Encontro
às três da manhã
Exu vem nu
Eu durmo em paz.
Quimera
Foi essa história de céu
que não me deixou
viver a vida.
A lei do sangue
Cresci com medo de galos. Vovó Benedita criava galinhas, mas os galos mandavam no galinheiro, mais agressivos e ameaçadores. Havia violência doméstica nos galinheiros. Vó era cristã, Deus era amor, maldade era coisa do demo. Na minha mente infantil a ave entrou na conta também. Eu não estava inteira na primeira vez que ofereci uma ave pra Exu, não tinha superado a questão com os galos, talvez a falsa liturgia do sacrifício animal tenha ido para o inconsciente, a oferenda acabou ficando incompleta. Na segunda vez que alimentei Exu, eu era protagonista da minha cabeça, nem resquício do falso machismo aviário. Comprei um galo grande, parecia ancião, esguio e hipnotizante. Penas pretas e algumas em tom azul escuro. Encantador e negro, como eu.
Foi no sétimo dia. Não temi a minha força. O galo tinha cara de águia. Senti sua energia. Não gritou, nem mexeu. Tive vontade de fazer o corte até. Quando o sangue esguichou, já estava apaixonada. Ele era sangue do meu sangue.