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Retrato 1
Uma sala de espera. Feita para esperar. Espalham-se por ela algumas dezenas de cadeiras estofadas azuis nas quais esperam 27 animais. Eles esperam com impaciência, mas desprovidos de uma conduta selvagem, entre paredes cor de abóbora, vasos com graciosos pés de manacás floridos e outros maiores com chefleras e filodendros, espelhos ovais e mesas cheias de revistas sobre moda e arquitetura. No centro da sala, uma fonte quadrada de pedras verdes foi ligada pela secretária que masca um chiclete de morango atrás de um balcão. A fonte espirra um fio d’água leitoso da boca de um querubim.
Retrato 2
Uma girafa lixa as unhas. Mastiga devagar um pacote de balas pegajosas. Faz barulho, deixa escorrer uma baba amarela. Na verdade, ela provoca a secretária, cuja mastigação sonora também não passa de uma provocação — talvez para fazer com que alguns dos animais desistam da consulta e vão embora. A girafa tem torcicolo e dificuldade para enxergar as unhas negras.
Retrato 3
Uma joaninha pula repetidamente da cadeira. Não pula, se joga. Em cada queda, uma decepção diferente. Ela sabe que não é o melhor lugar para cometer suicídio, mas não vê quem pode ajudá-la. Os outros estão muito concentrados em suas tarefas, afundados em seus preciosos momentos de tédio. E ela respeita isso. Só não respeita a vida que ainda insiste, que luta contra ela. A joaninha se joga da cadeira com as asas fechadas. Quando cai, não sente nada. Ela se odeia, mas além do corpo, possui um orgulho indestrutível que, inconscientemente, vai contra todos os seus desejos.
Retrato 4
Uma lontra tricota. Usa óculos de aros dourados e finos, tem os dentes da frente pronunciados e olha com desconfiança para as cadeiras mais próximas. De vez em quando solta um espirro estridente, mas continua tricotando. A peça de lã é da cor dos seus pelos e já está maior do que ela. Talvez use durante o inverno, talvez doe para as lontras em situação de rua.
Retrato 5
Um camaleão medita. A cada minuto, muda de cor. Mais novo, podia se camuflar onde bem quisesse. Agora não tem o poder de antes, mas ainda se esconde no azul da poltrona. Tem medo de que alguém sente em cima dele, então fica amarelo e branco como um píton. Enquanto medita, mantém os olhos bem fechados, cheios de dobras como se a história da animalidade tivesse se acumulado ali, em bolsas de pele e tempo áspero.
Retrato 6
Uma hiena confere o meio das pernas. Menstruou naquela manhã, tem medo de que desça de novo, que o sangue cubra o chão. Os outros sentiriam nojo, julgariam sua condição de fêmea. A calcinha continua cor-de-rosa. Ela cruza as pernas inseguras e relaxa o corpo. Talvez um sorvete aliviasse a cólica. Desde que chegou, não para de lamber os dentes, como se fosse caçar. Ri à toa e seu riso faz a joaninha cair da cadeira de susto — mas ela ainda não morre.
Retrato 7
Uma cobra tenta dançar um ritmo latino que sai das pequenas caixas de som da secretária. Não se importa com ninguém. Quer dançar a “Macarena”, mas sente necessidade de um espelho e os espelhos da sala estão todos ocupados — alguns cobertos por vasos cheios de plantas de mau gosto. Ela se lembra dos braços articulados, da descida com as mãos na cabeça e segura a vontade de chorar pela falta de membros. Ainda assim, balança corpo e cauda em movimentos opostos e sente-se minimamente mais feliz.
Retrato 8
Um flamingo se admira no espelho. É um dos poucos animais de pé, prefere o espelho ao descanso das cadeiras. Ele se acha lindo, podia estar na internet falando de livros que não leu ou de vinhos que não provou. Estufa o peito — não como um pombo, porque os detesta — e mexe as pernas finas. Sente que o cor-de-rosa do pescoço está indiscutivelmente mais branco, quase grisalho. Tem medo de envelhecer e sorri para esticar o rosto. O bico atrapalha. Talvez um pouco de botox? Manda um beijo para o reflexo, que responde, e ficam assim indefinidamente.
Retrato 9
Uma porca passa batom. É bem pequena, quase borra o rosto de vermelho. As pérolas no pescoço largo foram colocadas especialmente para o médico. Agita uma das patas com nervosismo, desejando a irritante tranquilidade do camaleão. Se pudesse, saltaria da cadeira para também se admirar no espelho, mas tem preguiça. Sente-se exausta só de fechar o batom, cuja tampa está toda suja de lama seca.
Retrato 10
Uma libélula voa da cadeira para a fonte e desta para a cadeira. O movimento deixa alguns dos animais tontos, mas ela sente uma necessidade doentia de voar. Quando se cansa, senta na cabeça do querubim e começa a contar o tempo que passa num relógio preso na parede sobre a secretária.
Retrato 11
Um cachorro coça o saco. Faz isso com elegância, olhando para os lados, certificando-se de que ninguém o observa. Quando a libélula parece perceber um mínimo movimento de sua pata peluda dentro da calça, ele enrubesce. É um dálmata cujas manchas escuras passam do preto para o castanho. Ele sorri um sorriso malandro e rapidinho cheira a pata. Pensa em tirar a roupa, mas só em casa, onde tem cerveja e televisão.
Retrato 12
Uma barata lê Kafka. Está suada e concentrada. Suas antenas giram perturbadas, mas ela não pode fazer nada sobre isso, afinal está preocupada com o rumo da história, talvez até com o rumo da própria vida. No entanto, nenhum receio é maior do que um dia acordar com dois braços, duas pernas e uma enxaqueca, acreditando que a Terra seja plana.
Retrato 13
Uma gata palita os dentes. Lança fragmentos molhados de peixe nos outros animais que olham torto. Não faz isso com todos, mas com os que parecem mais divertidos de irritar, mais suscetíveis à provocação. Depois atira o palito na fonte, que não cobre o jato de água leitosa como queria e, decepcionada, passa a se lamber: primeiro as patas, depois as partes íntimas, numa clara tentativa de atrair qualquer um. Está desesperada para dar.
Retrato 14
Um pinguim lê uma revista de arquitetura. Está fascinado com os vários formatos de iglu apresentados durante uma convenção de arquitetos da qual não fez parte. Arrepende-se amargamente de ter ficado ali. Ao virar as páginas, encontra não só os novos materiais usados na construção dos iglus, mas suas novas funções e valores. Fica espantado. A inflação deixou o gelo muito mais caro. Decide fechar a revista e tira os óculos, nitidamente preocupado com os novos riscos do mercado econômico.
Retrato 15
Um gambá segura um peido, mas seus olhos estão estalados, talvez saltem da cabeça. Tem medo de ser morto ali mesmo, pisoteado pela girafa, esmagado pela cobra, dilacerado pelo dálmata. Alguma coisa pode acontecer, mas não o relaxamento. Não pode nem sair para o banheiro, temendo que alguma coisa escape e, assim, entre para os anais da sala de espera.
Retrato 16
Uma mosca lê a Bíblia. Tem minúsculos óculos chapados na cara redonda. São treze graus de miopia nos dois olhos, um e meio de astigmatismo no direito. Lê com fé, com fervor. As asas farfalham enquanto passa pelo Evangelho segundo Lucas. Está tão emocionada e tão empolgada que pensa em abrir um canal de tevê só para moscas, mas só para aquelas que pensam como ela. Que as restantes queimem vivas nas raquetes elétricas. Amém.
Retrato 17
Um pônei fuma um cigarro de cravo. Está no terceiro. Não é permitido fumar na sala de espera, nem fora dela, ambiente que ainda pertence à clínica até a esquina, mas ele pouco se importa. Nas duas vezes em que a secretária o criticou pela fumaça, chamando-o de “cidadão”, ele a mandou tomar no cu e acrescentou: “cidadão não, pônei corredor, melhor do que você”. Fuma devagar e pensa em se levantar para dar um coice no flamingo, mas não quer ser expulso.
Retrato 18
Uma gralha bebe uma taça de Syrah. Bebidas alcoólicas fermentadas são permitidas na sala de espera. O vinho tem cheiro de pólvora, mas é bom. Ela trouxe de uma festa, da qual roubou também uns brincos de prata e uma dúzia de diamantes escondidos sob o corpo. Está de olho nos óculos da lontra, reluzentes como uma mina fervilhante de ouro. Gosta desse vinho, mas teria preferido algo mais leve, mais suave. Um Riesling, talvez.
Retrato 19
Um ornitorrinco vesgo se pergunta o que está fazendo ali.
Retrato 20
Um coelho de chapéu azul recorta todos os vestidos que encontra nas revistas de moda. A secretária o vigia, mas não faz nada. Não sabe onde ele encontrou a tesoura, talvez tenha trazido dentro da pochete prateada que aperta a barriga peluda. Não tem certeza. Ele corta com pressa, mordendo a língua e sempre bate os pés ao terminar. Corta as cabeças das modelos e as coloca em novos vestidos, trocando os corpos e às vezes os membros.
Retrato 21
Uma tartaruga não faz nada. Não contempla a própria espera, tampouco a espera dos outros. Não se finge de morta nem pensa que está viva. Ela pisca sem vontade e evita pensar na volta, quando sair dali e não houver mais táxis para chegar em casa.
Retrato 22
Uma coruja tenta jogar uma maldição no relógio, fazê-lo acelerar. É uma bruxa, sabe o que falar, como falar, os nomes que precisa invocar, quanto dos olhos precisa girar. E seus olhos são de cólera. Pensa inúmeras vezes se deve incendiar a fonte ou acabar com o sofrimento da joaninha. Talvez comê-la fosse uma ideia melhor.
Retrato 23
Uma cigarra gira no próprio eixo e solta faíscas. Ninguém sabe se para chamar a atenção ou porque está incomodada com alguma coisa. O giro é constante, enfadonho, parece um pião desgovernado. Ela sente-se tonta e para de repente, soltando um uivo que atrai olhares de desagrado. Em seguida, pede desculpas e volta a girar.
Retrato 24
Um hipopótamo olha para as plantas, analisa a cor das paredes, tem uma postura invejável. Talvez seja o animal mais elegante, a presença mais emblemática da sala de espera. Usa um cardigã italiano azul-marinho, cobrindo parte da pele escura e oleosa, cujo brilho também provoca a gralha de maneira involuntária. Ele é o único que está satisfeito com o tempo e com a espera, só se sente incomodado por não caber na fonte.
Retrato 25
Um sapo de boina pensa em ir embora. O cheiro do vinho e do cigarro de cravo deixam-no perturbado. Não bebe nem fuma há 4.129 minutos, uma vitória para ele, um alívio para a família. Usava drogas mais pesadas, fazia parte das bocas, mas não sente falta de nada disso, só do vinho barato e do cigarro. Seus olhos estão vermelhos e ele imagina, com um sorriso, sua língua esticando para roubar o cigarro do pônei.
Retrato 26
Uma abelha fala sozinha. O zumbido é irritante, fino, prolongado. Ela pronuncia palavras desconexas, às vezes pela metade, e parece que vai explodir a qualquer instante. Usa roupa apertada de academia, poliéster preto e amarelo, e às vezes voa até a fonte para beber a água leitosa.
Retrato 27
Um carneiro escreve sua autobiografia num caderno pautado. Sua expressão às vezes parece suspeita, como se resgatasse da sala de espera algumas ideias inesperadas e proibidas. Ele gosta da privacidade, mas não a respeita. Já escreveu sobre o cachorro, sobre a mosca, sobre o coelho. Adora uma fofoca. Quanto mais escreve, mais sente calor. Lembra com tristeza que precisa ser tosquiado.
Retrato 28
Um macaco albino, que vinha mastigando folhas de coca e jogando palavras-cruzadas, deixa a própria cadeira e pisa na joaninha.
Retrato 29
O lado de fora da sala de espera. Uma rua tomada de lilás pelo fim da tarde. A noite se aproxima e a clínica permanece aberta. A fachada, asseada e clara como a entrada de um spa, está cheia de carros. Dentro deles, humanos esperam, apoiados nos vidros traseiros, suando pelas bocas abertas. Outros estão presos por coleiras do lado de fora, amarrados em barras de ferro colocadas ali exclusivamente para isso. Pelados, homens e mulheres aguardam seus donos. Estão com sede e fome, lambem as axilas, o meio das pernas, babam sobre os pés, cagam onde podem, mijam nas plantas que já estão mortas. Esperam com o coração acelerado, sonhando com bolinhas coloridas, latas de sardinha, pedaços suculentos de carne e potes cheios de ração.