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1
os urubus
os urubus
os urubus
de lá
pra cá
em v o o s lentos
a negra coreografia pelo céu
sobre os monturos
latas, plásticos, comida, papel, roupas, vidros, latas, comida, latas, ratos, garrafas, comida, plásticos, cascas, miolos, plásticos, tocos, metais, tudo lambuzado de um mel nauseante que escorre pela terra, as mãos catando o que já foi descartado, e entre tantos e tantos homens e mulheres ali, que buscam sob o sol, nos dejetos, a sua comida, lá está Maria, cercada de imundície, de onde ela retira o seu sustento, e, numa pirâmide de entulhos, lá na frente, remexendo na sujeira que um caminhão basculante vomitou acima de outras tantas camadas de resíduos, entre o formigueiro de catadores, eis José, com a camisa enrolada no pescoço, já sem sentir o fedor pútrido do aterro, o fedor que embebeda as narinas e anestesia até o olhar, e enquanto vai separando as pets de coca-cola e guaraná e enfiando-as num saco preto, José tenta distinguir, para além daquelas montanhas de restolhos, a silhueta de Maria, que ela não saiba o que Mateus encontrou ainda há pouco, e Maria, como se pudesse sentir que José, mesmo lá distante, a observa, ela espanta a barata que lhe sobe pela perna e sorri com aquele achado especial, que hoje, junto a outras coisas, vai levar para o barraco, e assim eles trabalham, um pensando no outro, enquanto sobre a cabeça de ambos planam
os urubus
os urubus
os urubus
2
O sol,
esgotado,
(tanto quanto os dois)
por se repartir
em incontáveis raios
que, pelo dia afora,
lutam contra as gretas
e os espaços opacos,
já cede lugar à noite,
que, sem cerimônia, ocupa a sua vaga,
como uma peça de reposição
na engrenagem do tempo,
e José, até então submerso
num canto dos monturos,
arrasta numa sacola o que ali achou,
de valia,
ele no máximo proveito
do que, para outros,
é apenas sobra;
e Maria, do lado contrário
daquele mar malsão,
também regressa para casa
(mas antes
se volta para si mesma,
que lá, no aterro,
ela, ou qualquer outro,
só pensa nas coisas
que vê e se apodera,
a mulher que Maria é
a abandona
quando ela está
ciscando
entre os dejetos),
ela vai chegar primeiro que José,
que segue no seu passo
de cansaço;
os dois carregam
o que o dia lhes deu de mais precioso
e inesperado,
ele na memória,
ela nas mãos
— essas duas formas
de levarmos o que não cabe,
por direito ou dever,
largar no caminho —,
embora leve seja o achado de Maria,
quase nem pesa
daquele jeito que ela o leva,
dobrado,
o que não se pode dizer de José,
é rocha,
de tonelada,
e ainda lacerante,
o que Mateus achou
e, contando a ele,
acabou por lhe fincar
brutalmente
na memória,
e essa nunca desliga,
às vezes ainda,
do nada,
na sanha de selecionar as lembranças
torna ainda mais frenética
a sua voltagem.
3
Àquela hora, o casal já havia jantado.
Maria lavava a louça na bacia com água,
e José, sentado no banquinho, com o prato de alumínio na mão, mirava, pelo vão entre as tábuas,
— janela provisória —
as sombras da noite lá fora,
quando ouviu,
acima do rumor do córrego
que fluía atrás do barraco,
o som do Plantão da Globo
vindo lá do boteco do João.
Só podia ser coisa ruim, alguma desgraça no Brasil ou pelo mundo.
(José recordou do que se dera, à tarde, no aterro)
E se aquele som assustava num instante,
no seguinte o boteco se entupia de gente diante da tevê,
— a única daquele lugar —
com a fome dos fatos na cara, nos olhos fixos, nas bocas abertas.
Há poucas semanas, José fora lá farejar:
era um terremoto no Chile – umas cidades destruídas, mil mortos, outras mil pessoas desaparecidas…
Noutra noite, já no colchão, exausto, reconheceu aquele som macabro, mas não se moveu. O corpo era só dor, dor.
Mas Maria foi. E voltou com a notícia: tsunami no Japão.
Uns dias atrás, o som se repetira: a morte do doutor Sócrates, ex-jogador do Corinthians e da seleção brasileira.
Agora, o que seria?
José pensou no que havia acontecido,
à tarde,
no aterro.
Não, não iria passar na tevê. Ninguém ligava para o que ocorria lá, no lixão da cidade.
A recordação dentro dele fervilhava. Não queria ficar sozinho, com aquilo, na memória. Pesava, e demais.
Se falasse, dividiria o espanto.
Mas não era justo despejar mais carga
nas costas de Maria.
Os últimos acordes do Plantão da Globo soaram, quando ela se virou e disse,
Lá vem mais uma tragédia!
Apanhou o prato da mão dele e emendou:
O que será dessa vez?
José permaneceu calado.
Que ficasse só em sua mente
aquele acontecimento,
como uma semente seca,
pra não se arvorar nunca.
Maria suportava as mordidas dos ratos,
os cacos de vidro,
a coceira e a fedentina do lixo,
mas, às vezes,
bastava uma palavra,
e ela com os olhos d’água,
a resistência derretida num segundo.
Devia poupá-la, sobretudo pelo seu sonho: na conversa diária, Maria rabiscava,
para os dois,
uma criança.
4
José se ergueu.
Foi atrás do barraco urinar no córrego.
Ficou ali por um tempo, sendo ele também
o mundo de fora.
Ele só.
Separado das coisas,
como as que catava no lixo.
Desmisturado de tudo o mais.
Na sua apenas, e íntima, existência.
E a noite – sem lua e estrelas.
Maria, deitada no colchão, lia,
à luz mortiça,
uma revista,
o cheiro
e as manchas
do chorume
nas páginas
(que, por mais que se lavasse, persistiam).
José retornou ao barraco.
Escovou os dentes com a água do balde.
Tirou a bermuda e a camiseta
e, antes de se deitar ao lado dela,
de cueca,
pegou o despertador
(que, como quase tudo ali, recolhera do lixo)
e programou o alarme para às seis da manhã.
Não precisa, Maria disse, Você sabe que eu nunca perco hora.
É só pra garantir, José comentou.
Ela moveu a cabeça, concordando,
Meu corpo já se acostumou,
e ele,
Eu sei,
e colocou o relógio no chão:
Mas tem dias que a gente tá um bagaço!
Ela, virando a página da revista, disse,
Mesmo assim, sempre acordei antes dele tocar…
É verdade!, concordou José.
De longe, muito longe,
vinha o eco de um pagode.
O volume aumentou, aumentou,
chegou ao auge, tão próximo,
e, depois, foi diminuindo,
diminuindo,
até sumir.
Algum carro passara na estrada.
O ruído da vida ali,
naquela montoeira de barracos, à margem do aterro,
se sujou
novamente
de silêncio.
Maria fechou a revista e perguntou:
O que aconteceu hoje, lá, no seu lado?
José, inerte.
Mas rápido em suas resoluções:
se ela não souber por mim, vai saber por outro.
Como em qualquer lugar, as notícias, entre os monturos, também se espalhavam.
Então, era melhor dizer. Com o liso das palavras.
Porque a imaginação dela, por si só, ia meter mesmo pontas no fato
e encrespar seus pormenores.
5
O que foi que aconteceu?, Maria perguntou outra vez.
José abaixou a cabeça e respondeu:
Acharam um bebê!
E, para represar, ao menos por um instante,
o espanto dela,
emendou,
Veio num dos últimos caminhões.
Maria em sobressalto, quase a expelir a alma. Tanto que, instintiva, tapava a boca com as mãos:
Meu Deus! Meu Deus!
Outro esguicho de silêncio.
E estava vivo?, ela perguntou, querendo o milagre.
Não!
Como pode alguém fazer isso?
A gente ainda pensa que já viu tudo…
Maria precisava de minúcias.
Não conseguia, por si só, erguer em pensamento aquela realidade. O mundo que lhe desse os contornos inteiros: menino ou menina? Branco ou preto? Vestido ou nu? E outras perguntas na fila, pelo assombro de não poder calar. Como se…
Mas José apenas respondeu
(porque sabia que um detalhe, por ser detalhe,
extravasa e
supura),
Não sei, não vi, não sei.
E, para não a deixar no desamparo, na responsabilidade de reinventar para si a história toda, ele disse:
O Mateus, o Mateus que viu primeiro. Viu e levou pra cooperativa.
A noite calada, lá dentro, se interpunha.
E o sussurro do córrego.
Os dois ali, sem culpas, num momento que não lhes pertencia, embora a dor alheia fosse como se deles.
Então, por acreditar que só se responde ao fim com um começo, Maria esboçou um sorriso, a voz de quem se reencanta:
E o nosso bebê?
José pegou o despertador, só para ter algo nas mãos, sob o seu controle.
Já disse, tudo tem a sua hora, ele respondeu, tentando ser macio o máximo que podia.
Eu sei!, ela disse.
Não vai demorar muito, ele completou. Logo vou arranjar algum serviço melhor.
E Maria:
Temos de acabar a casinha…
No fim de semana, levanto mais uma parede lá.
José se ajeitou no colchão, mais perto dela, para que comprovasse a verdade do que dizia.
Mas vamos de ter de parar a obra, ele continuou: o cimento está acabando.
6
Maria se ergueu,
tão lenta e leve
que nem dava para se notar a sua vida
inteira
naquele seu gesto,
(mesmo José, que a via, translúcida,
como se por um vidro,
o percebia),
e, retirando de uma sacola o objeto, disse,
Olha o que eu achei!
Ele olhou, e re-olhou, sem entender:
O que é isso?
Ela desdobrou à sua frente,
até alcançar os próprios pés,
o que um dia fora,
todo branco,
em par com sua grinalda,
um vestido de noiva!
Ainda gerava ohs de admiração,
mesmo imundo e amassado,
assim como um homem velho
enlameado de tempo
ainda é
(se cuidou de preservar)
o menino de antes.
Maria nada disse,
e o exibia,
como se o vestisse,
um tudo o vestido dizia por si mesmo,
com seu longo
e seus babados,
embora não tanto quanto antes,
ao receber
alvo e virgem
o ajuste final da costureira,
e, ainda assim,
atraía a atenção de qualquer um,
até José,
não porque ele não tivesse nos olhos,
prévia,
a beleza
que há nas coisas lindas,
ou não a levasse primeiro em si
para depois descobri-la,
mas porque ele estava surpreso com aquilo.
Assim era em seus dias,
cavoucando os escombros do lixo –
de repente dava com uma mochila ainda boa,
um óculos escuro, um porta-retrato,
e, então, se acendia aquela luz de desconfiança
que a verdade,
em seguida,
apagava.
Que tal?, Maria perguntou, Não é bonito?
José moveu a cabeça,
num sim parcial,
Você não está pensando…
Claro que não, disse ela.
E completou:
Vou vender, e aí teremos dinheiro pro cimento.
Ele a mirou forte,
cético mas com o desejo de ser crente.
Vender pra quem? Quem vai comprar isso?
Ela dobrou o vestido,
devolvendo-o ao que ele era,
— uma esperança guardada —
e respondeu:
A Marta, do brechó. Ela compra tudo. Lava e depois vende. Aquela sua calça, eu comprei lá.
E vale alguma coisa?
Vale, vale muito!
Tomara!
É um vestido de noiva. Ainda tá bom. E dá pra reformar…
7
José colocou o despertador de lado e se ajeitou no colchão. A vida já estava para transbordar naquele dia. Era hora de serená-la com a tampa do sono.
Vem, Maria!, ele chamou.
Ela foi.
Apagou a luz
e o universo lá fora.
Só o córrego, na noite, insistia com suas águas.
Os dois perfilados, afundavam-se, devagar, nos seus quietos.
Ela o abraçou por trás, como se precisasse do corpo dele para sentir o seu próprio.
Tirou o bebê morto de sua mente e se pôs a rascunhar o rosto do seu, desejado e vivo, no futuro.
José, imaginoso,
de olhos fechados,
pegava outro tijolo,
ia subindo, sem pressa,
outra parede da casinha;
e a casinha ia aparecendo, toda,
vinda lá do fundo
do líquido revelador,
o sonho verde
dos dois,
que a criança,
e um trabalho digno
fora do aterro,
completaria.
Depois, aos poucos, eles foram adormecendo, enquanto ouviam, acima do barraco, o esvoaçar de umas asas, e outras, e mais outras:
os urubus
os urubus
os urubus