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São três mulheres velhas que moram em uma casa grande, também velha.
Há no casarão um menino de mais ou menos quinze anos.
Lázaro não é filho e nem neto de nenhuma delas. Estuda em casa. Dália ensina religião e piano. Lobélia ensina idiomas. Alpínia ensina culinária e noções de anatomia. O volume do rádio está sempre alto para as velhas escutarem música e, dizem as crianças pela cidade, abafar as vozes do sótão.
A cidade se chama Santa Graça – referência de virtude e limpeza no território nacional. No futuro, negrinho ou doente nenhum foi visto ali.
ÍCARO ATRAVESSA O OCEANO
Brasil, década de 30
Lázaro grita:
Lava a mão, Íris, esfrega. Lava direito pra ver se o preto sai.
Íris pensa:
Menino mentiroso. Lázaro fala que veio da Alemanha, mas a velha Alpínia diz que o moleque não é muito confiável e sua origem é mais local e precisa: Três Vendas, zona rural de Santa Graça. A mãe dele, que ninguém conheceu, largou a criança na rua. Uma vez, Dália e Lobélia passavam no povoado para comprar marmelo da fazenda Bela Vista, se depararam com um embrulho de fiapos dentro de balaio. Era o menino muito branco. Olharam para os lados. O ar seguro. Seco. Ninguém. Tarde firme. Ninguém em lugar nenhum debaixo do calor intenso e alaranjado. Sentaram-se na soleira da capela e esperaram quase a tarde toda que alguém chamasse pelo menino. Foi assim que nasceu o Lázaro. Nasceu de ninguém querer.
Era branco feito nuvem e era raro achar criança pura assim sem pai e mãe. Sobrava era pretinho sem família. Isso tinha aos montes. Andavam em bandos pedindo restos de comida e água nas casas das famílias ricas de Santa Graça. Foi assim que eu cresci, foi assim que cresceu o monte de menino do Mata Cavalo e assim teria crescido o meu Joaquim, se tivesse vingado.
Numa segunda-feira, depois do menino Ícaro voltar da escola, ele se pendurou na varanda do quarto da mãe dele e viu passar uns quatro, cinco meninos que pararam no casarão. Gente minha: roupas ajambradas em tom alaranjado de terra batida. Pediam um copo d’água. Aqui na casa do Ícaro eu não posso abrir a porta pra eles, a avó do Ícaro não me deixa. Quando me veem da grade, gritam meu nome para buscar pão velho. Se eu for, dona Rosa me manda embora. O Ícaro e os pretinhos não podem nem conversar. Dona Rosa e a mãe do menino, a dona Ondina, ensinaram que os negrinhos entravam na casa dos outros para roubar. Eram diferentes dos ciganos que entravam para ler a nossa mão e nos contar sobre o futuro; roubavam e a gente nem se dava conta. Os meninos de cor, preciso fosse, batiam nos outros e levavam as coisas compradas com tanto sacrifício. A dona Rosa dizia também que eram preguiçosos porque se eles que eram brancos estudavam e trabalhavam para conseguir os confortos da vida, por que os pretos não faziam o mesmo?
Tenho saúde e agradeço ao Deus Pai a cada noite. Tenho também vontade de matar a dona Rosa. Padre Arcanjo me ensinou a rezar para Deus e Jesus. É um santo homem; me ensinou também a não me entristecer por servir os outros. Tudo é vontade de Deus e Ele sabe o que faz. Pertence a mim o reino dos céus. Padre Arcanjo me lembrava da vida boa que eu tinha. Minhas avós de certo foram escravas e, graças a Deus, tudo melhorou muito.
Saí da janela para que os meninos não me vissem e espiei quando bateram palma e tocaram a campainha das três bruxas. Ícaro lá, de olho neles. Coitado, queria era brincar.
Lobélia abriu a porta. Fez sinal para esperarem na varanda e vi quando chamou alguém de casa. Dália foi até a varanda, deu batidinhas leves nas cabeças dos meninos que abriram a boca e mostraram os dentes, mas não era sorriso. Alpínia chegou com água e biscoito e uma toalha que Dália usou para limpar as mãos depois de encostar nas crianças. Ela mandou que voltassem no dia seguinte para comerem pão, mesmo horário. Os meninos desceram os degraus da varanda que dava para a rua. Pareciam alegres. As mãos sujas de terra agarravam os caramelos pretos que ganharam, aqueles com gosto de queimado, que grudam nos dentes. Um dos pretinhos achou o Ícaro. Ele sorriu seus dentes todos, os mesmos que tinha mostrado há pouco às donas do casarão. Ícaro teve medo, não do menino, mas da avó ver ele sorrir pro moleque. Ele se escondeu atrás da cortina. Uma pontada bem perto da orelha direita. Olhei para o chão. Procurei o neguinho. Ele sorriu de novo, abanou a mão e foi embora. Apanhei do sinteco encerado o caramelo que ele jogou pro Ícaro.
Terça, quarta e quinta a mesma coisa se repetiu. Os meninos do Mata Cavalo batiam na porta do casarão, Alpínia ou Lobélia davam pão e água. Dália dava leves batidas nas cabeças deles, enchia-lhes as mãos sujas de caramelos e eles iam embora. O mesmo menino que jogou a bala para Ícaro, jogou vários outros até chegar sexta-feira que foi quando eu vi pela última vez o menino da Ester.
Ícaro pensa:
A Íris lava prato, lava roupa, lava o chão e a mão dela continua preta. Ela esfrega a trouxa no tanque, água sanitária no chão da varanda. Não adianta: a mão dela é sempre preta.
Eu vi que o menino dos caramelos e mais quatro bateram palma no casarão e dessa vez entraram. Eram quase sete da noite e o cheiro da sopa vindo do casarão era sinal de que os meninos tinham sido convidados a se sentarem à mesa, comer feito gente. Talvez um naco de pão fresco para acompanhar o creme de milho que eu cheirava da varanda do quarto da mãe.
Eu me pendurei na janela até às oito quando a mãe me gritou que a janta estava pronta. Das sete até às oito nem sinal deles. Deviam estar se enchendo de comida de verdade.
Custei a dormir. A rua calada já há horas e eu sem conseguir pegar no sono. Pensava no menino do caramelo; preto não podia ser meu amigo. A vó nunca que ia deixar. Nem a mãe e nem o pai. Durante a semana brincamos de arremessar caramelo um para o outro, ele lá e eu aqui. Olhei debaixo da cortina, por todo o chão de sinteco alaranjado, mas não achei nada.
Os patos do casarão fizeram barulho e já era tarde. Esgoelavam como se alguém roubasse a casa. Mas nada acontecia em Santa Graça. Aquilo era só o cachorro com raiva ou com fome. Latido forte que demorou quase meia hora para cessar. Quando o bicho terminou de latir, dormi.
Lázaro diz:
A Íris lava prato, lava roupa, lava o chão e a mão dela continua preta. Ela esfrega a trouxa no tanque, água sanitária no chão da varanda. Não adianta: a mão dela é preta e suja.
Minha mãe de sangue era alemã. Me deu porque não tinha marido. Padre Arcanjo pediu para as três velhas me olharem e me criarem. Meu sangue é puro, basta me olhar. Não quero brincar com o Ícaro porque ele é retardado.
Dona Rosa manda
Vai brincar com o Lázaro, Ícaro. Menino bonzinho. A Íris não pode te olhar. Ela tem que limpar a casa, lavar os banheiros, fica toda suja. Não vai encostar nela, meu filho. Deus fez cada um de uma cor que é para que a gente saiba diferenciar o papel de cada um. E a gente não vai brigar com Deus. Onde já se viu?
Olavo explica:
Sou louco pelo meu filho. Ícaro é um menino bom, mas tem muitas limitações. Alguma coisa genética que a gente não sabe explicar. Eu e a Ondina fazemos tudo por esse menino e queremos que ele tenha uma vida normal. Ele vai à escola. É muito querido pelos alunos. Não sei se sentem pena dele, aquela coisa das pernas bambas que ele tem, coitado do meu filho. Mas as outras crianças normais adoram o Ícaro. A gente sente só de ver a carinha dele. Deus é pai todo poderoso e nos deu esse menino para cuidar. Temos muitos gastos com o Ícaro, os remédios são caros, mas valem cada centavo para vê-lo melhor. A Ondina é uma companheira única. Tirei a sorte grande. Fomos abençoados com Ícaro.
Olavo pensa:
Como essa criança baba, tropeça, me dá vergonha. Voa, Ícaro, voa.
Ícaro pensa:
De casa, todos os sábados, ao meio-dia, a rua inteira ouve as aulas de piano do Lázaro. Emenda piano com canto e a lição chega a durar uma hora e meia. É também a hora em que o cachorro enlouquece. Piano, latido, canto atravessam a rua. Do meu quarto dá pra sentir tremer o chão. O relógio bate uma e meia e volta à casa o silêncio. O som alto vindo da casa me incomoda. Quando fica difícil ouvir tanta confusão, eu bato a cabeça na parede para ver se sai aquele barulho todo de mim.
Sem escola para ir naquele dia, passei o tempo todo na janela procurando ver os meninos do caramelo. Nada. Devem ter saído do casarão enquanto eu jantava. Nos desencontramos. Íris também não viu quando saíram. Talvez passassem por ali depois das seis. Era certo que sentiriam fome e sede e bateriam as campainhas das casas até alguém dar a eles um resto de comida. O menino do olho preto brilhante me procuraria e jogaria no chão do quarto da mãe, mais um caramelo para a gente brincar. Mas ele não passou nem às seis, nem às sete, nem hora nenhuma.
No casarão, um cheiro forte de comida. Cozinhavam a carne de domingo. As três irmãs cozinhavam juntas. Dava para ver do quarto dos fundos da minha casa, uma ponta do fogão à lenha delas. Potes enormes. O fogo constante, uma função sem fim de comida, talheres, ervas colhidas no quintal. A cozinha era escura, velha. Todo domingo faziam carnes temperadas, aromáticas, corte de primeira como Alpínia mesma dizia quando me via na janela dos fundos olhando a vida deles.
Ondina pensa:
Todo domingo, antes de almoçar, as três vizinhas do casarão vão à missa. Eu também vou. Olavo e mamãe me acompanham. Levamos o Ícaro porque meu menino precisa muito de oração. Nossa Senhora dos Milagres há de interceder e dar a ele as pernas fortes que ele merece, uma fala clara e límpida, a cabeça certa, tadinho. Compartilhamos o pão que é o corpo de Cristo e engolimos o bolo empapado que vira a hóstia depois de breve prece. Deus que me perdoe, mas aquilo me embrulha o estômago desde o catecismo.
Vão as velhas e o menino Lázaro. Voltam as velhas, Lázaro e o padre Arcanjo que almoça no casarão todos os domingos sem falta.
O domingo inteiro passa e o padre Arcanjo sai do casarão às quatro da tarde. Carrega uma bolsa e uma marmita. As velhas do casarão o mimam o quanto podem. São muito devotas e mantêm uma relação de estreita amizade com o padre. De vez em quando, padre Arcanjo leva o Lázaro com ele para a igreja. Quando coincide de eu estar na varanda e ver eles saírem, o padre explicava que Lázaro toma aulas de Latim com ele e domingo à tarde, horário de folga das rezas.
Ondina comenta:
Aulas de latim… Sei.
Íris faz
Café pro Olavo.
Olavo olha
Íris lava a colher ensaboada pra cima, pra baixo, pra cima, pra baixo.
Ícaro pensa:
Naquele domingo, esperei mais uma vez que os meninos da rua fossem no casarão pedir comida, mas não foram. Meus pais insistiam para que eu brincasse com Lázaro esquisito. Dizia ser médico e cortava bichos pela metade. Costurava e colava pernas de aranhas em corpo de formiga. Tinha também uma coleção de ossos que ele encontrava debaixo da terra. Lobélia contava que antes de comprar o terreno do casarão, ali tinha sido um cemitério de cachorros. Mas aquilo era história para assustar criança. O que tinha debaixo da terra era gente mesmo que há muitos anos estava enterrada virando adubo e lenda. Lázaro achava ossos e construía esqueletos de seres imaginários. Monstros que ele via.
À noite, lá pelas seis, o cachorro latiu com toda a sua força. O rádio em volume máximo por causa das velhas surdas. Uma hora depois, silêncio. A calada do início da noite de domingo foi quebrada com o ranger do portão de ferro coberto por lodo e ferrugem. Padre Arcanjo trazia Lázaro de volta. Elogiou o progresso do menino no Latim e avisou que Lázaro já estava de banho tomado. O menino tinha se deliciado com doce de leite e se lambuzado mais que o aceitável para um rapazinho daquele porte. O santo padre sugeriu, então, que se limpasse na casa paroquial antes de voltar para casa. Sem mais conversa, Alpínia se despediu do padre que subiu o morro segurando a batina para não tropeçar, cabeça baixa, sempre humilde.
Fui dormir sem me esquecer do menino do caramelo. O menino que, pelo jeito, estava desaparecido.
Fragmento de la novela Puro
Relógio d’Água, 2023; Todavia, 2024