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Disseram que naquela terra havia um homem que guardava nomes. Na noite anterior, ansiosa, planejara avançar certa, casa adentro, e se sentar convicta diante do nomeador. Imaginou-se, com o terço entre os dedos e as mãos no regaço do vestido de bolinhas brancas, narrando, sem rodeios, os motivos da visita e as esperanças que no guardião de nomes depositava. Nada além. Ao cruzar a porta, contudo, uma enorme e desconhecida curiosidade obrigou-a a observar atentamente os detalhes da entrada — a mesinha de madeira maciça adornada em relevo, os três ganchinhos na parede a sustentar as chaves, o paletó e o chapéu fora de moda — para depois perceber a bem-organizada sequência de grossos volumes em capa dura que, do outro lado da sala, a observavam, sóbrios. À frente dos livros estava o guardião de nomes: os cabelos esbranquiçados, curvado demais para a idade. Caneta na mão, diante de si o enorme livro aberto. Não ergueu os olhos, indiferente a quem entrava: era exatamente como o haviam descrito. Finalmente avançou, os passos cuidadosos como se temesse ser atacada, os olhos fixos no nomeador. Nunca imaginara estar ali…
Sentou-se e percebeu a boca seca, um nó a maltratar-lhe a garganta. Estava assustadoramente próxima, capaz de reparar no formato do nariz e na pele das mãos do nomeador. Apertou o terço entre os dedos, machucando-se, antes de começar a falar. A voz saiu com dificuldade, as palavras tentando fixar-se sobre a língua áspera: precisava de um gole d’água, mas não pediria nem aceitaria nada dali. Respirou profundamente, esforçando-se pela salivação impossível, contraindo o abdômen como se fosse este um ponto de apoio. Enfim, anunciou que vinha em busca de um nome, mas não para si. Confessou o imenso esforço que isso lhe exigia, a imensa resignação, pois muito ouvira e muito se falara sobre aquela casa. Era um imenso amor que a levava até ali, esclareceu. Um amor absoluto. Um amor de sacrifício:
— Aqui venho por um amor como o do Cristo, uma verdadeira Paixão. Venho aqui atendendo a um chamado Dele — e fez o sinal da cruz — Que fique claro: aqui estou em missão sagrada.
Olhava fixamente, segura, na presença do nomeador, que ainda não erguera os olhos. Aguardou um instante por qualquer reação; não a encontrando — era mesmo um velho bruxo, alguma espécie de animal — iniciou a narrativa da forma como ensaiara. A compaixão era o sentimento que a definia, a voz que lhe guiava os dias. Criara os filhos, cuidava do marido, e de todos os demais filhos e maridos que pediam ajuda. Com ela contavam em cada festividade eclesiástica: era incansável, enérgica, auxiliava até na casa paroquial. Era catequista, vendia rifas, dispunha-se a auxiliar tanto na contabilidade quanto na limpeza da igreja. A vizinhança sabia que se um mantimento faltasse, ou uma criança adoecesse, ou fosse preciso ir à polícia prestar queixa, podiam contar com ela. “De uma incansável compaixão”, assim o padre a descrevera, na missa de aniversário, e era incapaz de se lembrar destas palavras sem sorrir. Sua compaixão era, fato, infinita: em suas orações, nada pedia além de vida longa e saúde para ajudar os outros.
Jamais teria se furtado, dessa forma, ao importante chamado que o diácono fizera, nos anúncios à comunidade. Mais do que desafiador, era empolgante, a possibilidade de estender a compaixão além das estreitas fronteiras de suas relações. Apesar da idade, foi a primeira voluntária, a primeira a marcar o nome no grupo que viajaria de ônibus até a aldeia: quinze horas de estrada para auxiliar na catequese. As cenas que o diácono descreveu a impressionaram: um grupo de mais de duzentos índios nus, sem contato com o mundo exterior. Nômades, sequer sabiam plantar. Viviam sujeitos aos humores da natureza, ao clima hostil, às feras, e agora aos madeireiros que, ameaçadoramente, se aproximavam. O conflito era iminente. Como mãe, como esposa, como cristã e catequista, não poderia sentir nada a não ser uma absoluta compaixão. Diziam que exagerava, que não era serviço para uma mulher da sua idade. A comunidade era grande, havia outros. Não quis ouvir aquilo: imaginava mesmo os duzentos índios em sua casa, em sua mesa, e ela se desdobrando para lhes ensinar tudo. Diziam que sequer sabiam usar o banheiro! Imaginava-se cuidando de todos durante a semana para, no domingo, levá-los enfileirados até a igreja, dando-lhes lugar na primeira fila. O chamado do diácono pegou-a do fundo da alma, sentiu que Deus falava diretamente com ela naquele momento. Àquela aldeia e àquela gente bruta levaria o seu melhor, o melhor da civilização…
Sequer viu passar os dois dias de viagem, rezando o tempo todo. As quinze horas previstas se baseavam na distância dividida pela imaginada velocidade média, o cálculo de um diácono, não de um motorista. Evitando as crateras da rodovia, escolhendo as estradas vicinais para não chamar a atenção da Polícia Florestal, a viagem tornou-se um desafio maior do que a catequese. O banheiro do ônibus não dava conta dos passageiros, faltavam mantimentos. Quando os jovens, cheios de energia e decisão na partida, quiseram desistir e retornar, ela se fez mais firme. Não esmoreceu, rezou o tempo todo, grata pela inabalável convicção com que o Senhor a havia ungido. Quando enfim encontraram o ponto de apoio, e a mata fechada atrás dele, os outros respiraram aliviados pela conclusão da viagem: ela fez o sinal da cruz, pediu uma vez mais força e vida longa, pois sabia que, na verdade, a jornada apenas se iniciava. Aquele era o grande momento de sua vida. Ali estava atendendo a um chamado.
Ao invés de, como os demais, descansar da viagem, esticar as costas, fazer uma boa refeição ou aguardar o horário da missa, ela pediu para ir de uma vez à aldeia. Ali estava para servir: já descansara, almoçara ou rezara o suficiente nesta vida. Era a pessoa certa sendo capacitada: queria que as vizinhas, o padre e toda a comunidade a visse ali, esbanjando disposição. Rejuvenescia! Eram os dias mais felizes de sua vida! Nas três horas seguintes, montada na caminhonete, selva adentro, esticava por todo instante o pescoço, ansiosa por divisar as malocas, conforme as imaginava. Sorriu ao dizer que se via como a própria colonizadora, erguendo a cruz em meio aos índios nus, observada com espanto. Ansiava por se doar, por ensinar. Queria salvar-lhes a alma, mesmo que fosse seu último sacrifício. Estava pronta para entregar tudo, se tudo fosse exigido. Quando finalmente chegou, era muito diferente do que concebera, mas se sentiu ainda mais confiante. Indignou-se com o motorista, que se manteve próximo do carro, a mão na arma. Ali estava para amá-los, como Cristo os amava. Desprezando todos os conselhos, entrou na aldeia com os braços abertos, rezando, convidando-os para a entrega, para a fé. Era o Senhor que agia através dela. Dos duzentos índios anunciados, contudo, só encontrou uma vintena…
Com os olhos marejados, narrou ao guardião de nomes a emoção que foi ser aceita, ver aquela gente brincar com seus brincos — tão simples, nem era joia — e gesticularem curiosos com suas roupas e o tom da pele. Ao ensinar-lhes a juntar as mãos em súplica e conduzir a oração que Jesus pregara, sentia que cumpria sua missão de vida. Eram tão puros… Mexiam em seus cabelos e, se ela se interessava por algo, simplesmente a entregavam. A morte os rondava; mantinham-se dóceis. Eram um campo fértil a aguardar pela semente: lá estava ela, com o privilégio de, pela primeira vez, levar-lhes a Palavra Sagrada. Só podia ser grata! Viviam como animais, ignorando tudo: o motorista contou que não plantavam, que morriam cedo, que adoravam uma espécie de tronco, que não entendiam as famílias, os casais se trocando com liberdade, as mulheres se dispondo a muitos maridos. Ninguém ensinava nada às crianças, não sabiam ler e escrever, não havia uma palavra a ser aprendida. Para ela, as críticas do motorista só tornavam aquela oportunidade ainda mais incrível. Seria ela a levar-lhes o mundo, a civilidade, a vinda do Cristo. O guardião de nomes podia compreender o que aquilo significava? Cabia-lhe dar a notícia de que o filho de Deus viera à terra e por eles morrera!
O nomeador ergueu os olhos, mas nada disse.
— Eu sabia que eram canibais: o diácono e o motorista haviam me alertado. Contaram também que enterravam vivas as crianças deficientes e os gêmeos, tudo para me assustar. Se faziam isso com crianças, o que não fariam comigo? Claro que era assustador, nem posso imaginar — chacoalhou a cabeça, benzeu-se —, porém, era a incansável compaixão que me movia. Estavam sozinhos, abandonados à própria sorte, depois da fronteira do fim do mundo. Cabia-me salvá-los…
Uma jovem índia, em especial, chamou-lhe a atenção. Sabia que o padre reprovaria tais ideias, mas confessou em voz baixa que, ainda assim, teve-as: era como se fosse sua filha, de outras vidas, tão forte e imediata a ligação. Estava ali por todos, mas antes por ela, soube-o de imediato. Tinha quatorze anos e dois homens a ladeavam. Perguntou se eram seus irmãos: descobriu que eram seus maridos; ambos! Era linda, delicada, a mais pura dentre aqueles puros. O tempo todo pegava-a pelo braço, mexia em suas coisas. Era adorável… Aconteceu como se planejado, mas, se ensaiado, não teria funcionado tão bem: chamou a mocinha para ver como o carro funcionava, trocou um olhar com o motorista. Deixou-a mexer nos espelhos e ligar o rádio — encantava-a a luzinha. Num instante, bateram as portas e arrancaram: ela se assustou, gritou por socorro enquanto os demais se agitaram, atiraram coisas, correram. Nada fez senão manter a moça entre os braços, sussurrando “filhinha, filhinha” em seus ouvidos, confortando-a como uma mãe que leva o filho ao médico para um procedimento dolorido. “Filhinha, filhinha”, repetia carinhosamente, enquanto o motorista acelerava rumo à cidade, onde estariam em segurança.
O guardião de nomes jamais poderá imaginar a imensidão do desafio que é criar uma jovem índia. Já nas primeiras horas, ela compreendeu a loucura que era sonhar em ter toda a aldeia em sua casa: aquela única alma selvagem dava-lhe mais trabalho do que todos os maridos e filhos de toda a comunidade! Imaginara ensinar o catecismo, guiá-la pelas orações, esclarecer os mistérios, mas, durante as primeiras semanas, nada fazia senão insistir para que a moça usasse o banheiro, comesse, se sentasse e dormisse da maneira correta. Cada vez que ela deixava o banheiro, estava imundo, à exceção do vaso, que nunca era utilizado. Comia com as mãos, dormia no chão: era impossível demovê-la do hábito. Não conseguia se sentar na cadeira, nem dizer as palavras mais simples. Não conseguia que a chamasse de mamãe de maneira alguma. Qual a dificuldade de balbuciar ma-mãe? Ainda assim, não conseguia… Um dia, finalmente entendeu que se chamava Zoeh, e tratou de logo lhe mudar o nome: talvez assim as coisas fossem mais fáceis. Batizou-a Maria, como a mãe de Deus, e ao lado dela todos os dias rezava o terço, esperando que, pelo nome e imitação, o Espírito a alcançasse. A incansável compaixão, da qual se orgulhava, parecia testada ao limite com aquela única conversão, mas não desistiria… Deus era testemunha da imensa dificuldade daquela única conversão…
Conseguiu pequenos progressos, modestos diante dos seus planos, mas que a encorajavam. Em algumas semanas, a filhinha aprendeu a usar o banheiro e a comer, ainda que de cócoras e usando apenas o garfo. Continuava dormindo e acordando muito cedo e preferindo o chão, porém já se aprontava para as orações, parando ao seu lado, mantendo as mãos em palma, fechando os olhos enquanto as Ave-Maria e os Pai-Nosso ressoavam pelo cômodo. Não a deixava sair, jamais, mesmo porque as roupas eram uma barreira difícil de ser vencida: uma simples calcinha, uma camiseta larga incomodava-a horrivelmente. E nem se podia falar em sapatos! Eram modestos os progressos, animados por nada além da fé que renovava a cada dia com fervorosas orações, sempre intensas, nas quais pedia que a filha Maria aceitasse Deus em seu coração. Era o centro de tudo, o guardião de nomes podia entender? Parecia-lhe que todas as crianças às quais ensinara as orações, todas as bandeirinhas que costurara para festas de sucesso, os jejuns, as novenas, os recordes de rifas vendidas, os grupos organizados de senhoras nada valiam se não conseguisse salvar aquela alma. Aquela alminha. Entendia agora o episódio do Cristo com o diabo no deserto: tentava-a declarar que, se a filhinha resistia, deveria voltar à aldeia. Queria declarar que fizera o seu melhor e que a decisão cabia à moça. Sabia, porém, que estas ideias não provinham de si: era o outro quem pedia que desistisse. Ela era a incansável compaixão.
Arranjou as coisas para a partida definitiva, crente de que a proximidade da selva prejudicava o projeto. Pediu ao marido ordem de pagamento, combinou com o motorista a viagem até a cidade natal na caminhonete e pelas mesmas estradas secundárias, abandonando o ônibus e demais membros da missão. Ajeitando uma trouxa com o pouco que ali havia, explicou para a filha Maria que fariam uma grande viagem, uma viagem definitiva, e que precisavam rezar mais do que nunca, rezar até doerem os joelhos para que tudo corresse bem. Movia-a a incansável compaixão, sentimento sem lugar no mundo: o motorista cobrou caro e a alertou que poderiam ser acusados de sequestro. As pessoas não entendiam… Era sua filha, sua filha Maria, e a resgatava da barbárie. O que uma mãe não faz por uma filha? As mães são sagradas, só as mães. A filha, a filhinha Maria, tinha só quatorze anos: sonhava levá-la para casa e organizar um baile para o aniversário seguinte. Um belo vestido, as quinze valsas… Antes, precisava convencer a filha a usar uma única peça de roupa, mas, como mãe, sonhava.
Quando recebeu o aviso da disponibilidade da ordem de pagamento, agradeceu ao sagrado efusivamente. Pediu à filhinha que estivesse quieta no quarto por no máximo uma hora. Explicou-lhe com gestos e palavras doces, como se falasse com um bebê, que a mamãe já voltava, que deveria aguardá-la de joelhos, rezando à Nossa Senhora dos Navegantes para que tivessem uma boa viagem. Fechou a porta delicadamente, olhando-a até o limite da fresta, uma anjinha, toda nua, com as mãos em súplica e olhos fechados, de joelhos. Voltou-se então e acelerou os passos, decidida a cumprir as obrigações e retornar o mais depressa possível, temerosa de que a filha se machucasse ou chorasse, pois era a primeira vez em que ficava sozinha.
Pelas ruas da pequena cidade, na fila do banco, enquanto pagava o motorista e comprava os mantimentos para a longa viagem, rezava, repetindo o Pai-Nosso, a Ave-Maria e canções religiosas para pedir que o Senhor guardasse a filha sozinha, tão próxima a partida e salvação daquela alma, que a guardasse só mais alguns minutinhos, pois logo estaria de volta.
Quando retornou, percebeu algo no olhar do recepcionista, e sentiu o coração acelerar. Subiu as escadas mais depressa do que os joelhos permitiam, ofegante, desesperada. O segundo a mais pelo qual o recepcionista a encarou indicou que as orações não haviam bastado. Encontrou a porta do quarto escancarada: as pernas perderam força. Quando cruzou o pórtico, ofendeu-a o quarto completamente destruído: roupas e cortinas rasgadas, o rádio esmigalhado contra a parede, fezes e urina por todos os lados, a mala atirada da janela para o pátio interno, o vaso sanitário quebrado — como tivera forças?! —, pedaços da Bíblia Sagrada rasgados a flutuar em meio àquele cenário apocalíptico. Nenhum sinal da filha. Sentiu a pele gelada, a respiração falhar, e depois disso, mais nada… Acordou com o recepcionista a abaná-la, chamando-a enquanto ela balbuciava, sem que fosse entendida, “filhinha, filhinha”, sofrendo aquela perda como nenhuma outra em sua vida.
— Minha filhinha… Ainda posso vê-la ali, rezando com as mãos juntinhas, um anjinho que Deus me deu para criar e deixei escapar…
O motorista a ajudou a organizar o quarto e resgatar o que era possível. Negociou a reparação com o dono da pensão e a levou até o ponto de apoio, a vila nas franjas da selva. Lá, os missionários a acolheram, sempre tão gentis, e choraram junto dela ao escutarem a narrativa da aventura. Fizera todo o possível para salvar aquela alma, mas havia o livre arbítrio, diziam tentando consolá-la. Não era para ser, devia confiar nos caminhos de Deus, repetiam para ela, que mecanicamente acompanhava as missas e novenas, perguntando-se incessantemente onde errara, se forçara demais em algum ponto, condenando-se por ter deixado a filha sozinha. Estava tão perto… Era só tê-la levado consigo…
Da selva, chegavam notícias: a índia Zoeh, a bruxa Zoeh, organizava pajelanças. Substituíra o feiticeiro após a varíola que o incapacitou e tomou para si mais dois maridos quando as respectivas esposas morreram. Conduzira os sobreviventes do grupo para a floresta profunda, onde habitavam as feras, conclamando-os a encontrar o ancestral comum — aquele que lhes ensinara quais frutos podiam comer — e a viverem próximo dele. Vigiava com rigor o cumprimento das tradições, desenterrava os mortos para lhes comer as carnes, iniciava os meninos deixando-os com as mãos dentro do formigueiro. Proibiu a tribo de se aproximar de qualquer branco, de efetuar qualquer troca, de avistá-los sem perseguir e matar. Dos mateiros que partiram em seu encalço, voltou apenas um, sem as orelhas, o nariz cortado fora com uma faca de pedra, a razão perdida para sempre. Assustados, os missionários insistiam em abandonar o projeto, em retornar antes que fossem atacados, temendo que uma investida estivesse sendo organizada. Orando, resistiu o quanto pôde. Por fim, desistiu, e retornou com os missionários, nunca em toda sua vida tão infeliz, a chorar por sua filhinha, sua anjinha que fugira.
Quando de volta à cidade, à casa, capela, marido e filhos, fez o que pôde para retomar as atividades com a mesma paixão e intensidade anteriores, mas dentro de si algo estava partido. Confessou suas dores ao padre, chorou abraçada ao diácono, pediu que as senhoras do grupo de oração dedicassem-lhe uma Ave Maria todas as noites. Jejuou, embora preocupasse a todos com a perda de peso. Prometeu à Santa caminhar mil quilômetros caso a filhinha voltasse, mas não foi ouvida. Numa manhã, já desenganada, veio-lhe a ideia de procurar o guardião de nomes, e a primeira reação foi fazer o sinal da cruz. Não poderia! Jamais se perderia em heresia! Que o nomeador não a julgasse mal, mas havia histórias sobre ele que a assombravam, por certo sabia do que se tratava. A incansável compaixão, contudo, era maior do que o temor: eis quem era e o que a sustentava. Para salvar a filha, estava disposta a tudo, inclusive a pecar. Finalmente juntou as mãos e suplicou ao guardião de nomes, esclarecendo o motivo da visita:
— Preciso que o senhor escreva neste livro o nome da minha filhinha, registre o nome cristão dela. É minha última esperança para que ela volte para casa, para a cristandade, para mim… — com o dorso da mão secou os olhos e um instante depois retomou a súplica — Por favor…
O guardião de nomes olhou-a demoradamente, a ponta de um dos lábios discretamente erguida. Alisou a folha corrente do enorme livro, apanhou com naturalidade a caneta tinteiro, posicionou a mão a fim de grafar o nome, certo, inequívoco. Acompanhando-lhe o movimento com os olhos, a senhora sorria sem exibir os dentes, satisfeita, agradecida pelo sucesso no diálogo com o bruxo. De súbito, porém, a expressão desmanchou-se, fez-se aterrorizada: não grafara no livro o nome cristão, o nome que ela mesma escolhera para a filha, mas o nome indígena! O desgraçado escrevera Zoeh no livro de registros, ao invés do nome certo! Como fora capaz?! Era muito atrevimento, era zombar de seus sentimentos maternos! Era desprezar todo esforço dela para salvar a filha, e condená-la a viver para sempre perdida nas profundezas da selva!
Ergueu os olhos e o indicador, pronta para protestar, respirando fortemente, mas encontrou o guardião de nomes a encará-la fixamente, ainda com a caneta na mão. Sentiu um vazio no estômago: e se roubasse seu nome? Levantou-se apressadamente e fugiu da casa, fazendo o caminho de volta entre resmungos e lágrimas pela filha perdida para sempre. Reparou que deixara cair o terço de madeira: que lá ficasse como uma resposta ao bruxo.
Sozinho, o guardião de nomes observou o nome da índia recém-grafado, e o acariciou, delicadamente, depois de ter certeza de que a tinta secara. Então, fechou o enorme livro.
Fragmento do romance O Guardião de Nomes