PJ Pereira é autor da trilogia Deuses de Dois Mundos (2013, 2014, 2015), romances publicados em cinco países e que atingiram o nível de mais vendidos no seu Brasil natal. Em 2017 foi publicado seu romance A Mãe, A Filha, e o Espírito da Santa. Além de autor, Pereira é pioneiro em publicidade e entretenimento, co-fundador da agência Pereira O’Dell, ganhador de um Emmy, e ávido praticante de artes marciais com algumas faixas pretas em estilos diferentes de Kung-Fu e karatê.
Bruce Dean Willis: Um tema preponderante nos seus romances é a religião, e as relações entre ela e a fé, a espiritualidade e o autoconhecimento. Você fez muitas entrevistas com pessoas vitimadas por líderes religiosos na fase de pesquisa do seu romance mais recente. Por outro lado, você consultou com autores e autoridades da diáspora das religiões africanas na fase de pesquisa da trilogia. Você poderia resumir a importância desse tema da religião como motor, ou talvez como meio para conseguir um fim, nas vidas de personagens como Pilar e New?
PJ Pereira: Eu nasci e cresci dentro de um culto. Não foi uma escolha minha. A escolha foi apenas a de sair, depois que fiquei adulto. Mas todas as minhas recordações de infância são influenciadas por essa experiência – tanto as boas quanto as ruins. Uma das coisas que acontece quando se é criado num desses cultos é que parte da sua vida vira um segredo, um tabu. Então a religião se torna essa mistura de orgulho (você é levado a acreditar que faz parte de um grupo especial de escolhidos) e uma vergonha (você não pode contar para ninguém). Para complicar, eu estudei em um colégio e depois em uma faculdade católica. Então o tema da fé estava o tempo todo em volta de mim.
O engraçado é que não decidi escrever sobre fé. Escolhi escrever sobre as tradições africanas, porque gostava de mitologia e um dia descobri que o mundo me havia negado essas histórias tão fundamentais para entender a cultura brasileira. Mas para encontrar meu próprio lugar nesse universo, criei o New como personagem, que entrava em contato com esse mundo dos orixás, mas não se sentia confortável porque era muito diferente do que ele havia sido educado a acreditar.
Com o desenvolvimento da história, veio a Pilar e o culto que ela construiu, porque era a experiência que eu mais conhecia sobre a questão da religiosidade. E a personagem cresceu até ganhar um livro próprio.
Olhando para trás, embora não tenha sido intencional nem consciente, a narrativa acabou por revelar tanto minha fascinação quanto o medo que eu tenho do tema da fé – esse conflito que eu tenho em admirar a fé e a dedicação de um indivíduo àquilo que ele acredita, ao mesmo tempo que eu tendo a rejeitar visceralmente todas as formas de poder ligadas à experiência religiosa – seja ela o poder de uma igreja, um culto, ou uma pessoa. Mas veja: não é um julgamento, entende? Eu não acho que toda fé é linda e todo líder religioso é um crápula. Eu só me encanto com um, e tenho medo do outro. São sensações, não opiniões.
B.D.W.: Às vezes no processo de escrever, os personagens se apoderam de si mesmos e a trama sai de maneira imprevista. No desenvolvimento de uma personagem narcisista como Pilar, você chegou a sentir que ela eludia seus planos? Ou, pelo contrário, que os outros personagens tentaram se rebelar contra a submissão que você queria para eles ante Pilar?
P.J.P.: Meu processo criativo tem um padrão muito claro. Eu desenho a trama completa antes de escrever os capítulos, e depois escrevo um capítulo por dia. Isso me informa onde aquele trecho precisa começar, e onde precisa terminar, mais alguns pontos críticos que precisam acontecer. Mas a fórmula acaba aí. Leio esse resumo pela manhã, passo o dia pensando em como construir as cenas mais fortes para esses acontecimentos, e de noite eu me sento para escrever. E aí, o plano nunca acontece como deveria. É muito normal um personagem tomar conta da própria história e fugir do roteiro original. Então eu deixo. Às vezes isso cria implicações nos capítulos anteriores, às vezes no que ainda não escrevi… e vou fazendo essas anotações para as próximas revisões. A relação de Pilar com seus súditos já era mais previsível para mim, porque eu vivi aquele tipo de dinâmica do narcisista tóxico com seus seguidores mais de uma vez. Então planejei a trama toda sabendo como seria. Agora, a relação dela com o primo João Batista… essa sim me surpreendia a cada cena. Eu nunca sabia o que ela ia tentar, e como ele iria reagir. Então, tem o final. De tudo que escrevi em todos os livros, o único que eu deixei o enredo em branco para que pudesse fluir como os personagens quisessem, foi a morte de Pilar. Quando cheguei nessa cena, eu havia passado o dia me preparando. Comi leve, procurei não elevar o stress… tomei um banho demorado e sentei para deixar os personagens resolverem suas questões. Foram cinco horas na frente do teclado. Quando escrevi o esperado “the end,” deitei na cama e chorei até adormecer. Estava viajando sozinho e não tinha com quem me desabafar. Acordei na mesma posição de feto, com dores em todo o corpo e uma mistura de luto e euforia que me confunde até hoje. Nessa cena, deixei para trás muitos dos meus fantasmas, e cometi todas as violências que algum dia eu havia fantasiado cometer. Aquele PJ que acordou como um feto, foi uma segunda encarnação de mim mesmo. Porque naquela noite meus personagens deixaram a minha vida anterior para trás. Eu fiquei livre.
B.D.W.: Quais são os autores, ou as leituras, que mais impacto fizeram em você como escritor?
P.J.P.: Meu primeiro livro foi de contos de fadas antigos. Esses que todo mundo conhece, os europeus. Depois, minha mãe me apresentou à obra de Monteiro Lobato, que criou um universo de fantasia que misturava a vida rural brasileira com aventuras por universos mágicos como o Minotauro e a Iara (um tipo de sereia do folclore brasileiro). Então minha iniciação na literatura veio pela fantasia.
Depois, também por indicação da minha mãe, conheci Agatha Christie, que me fascinou pela capacidade de montar histórias tão cheias de detalhes que eu mal reparava que ela havia me dado tudo que eu precisava para desvendar os mistérios. Nessa época, eu já tinha sonhos de virar escritor, e essa forma de escrever já aparecia como o desafio que eu queria tentar enfrentar.
Da adolescência em diante eu comecei a ler mais autores brasileiros. O realismo mágico de Jorge Amado e Ariano Suassuna, me encantou de cara, assim como o lirismo debochado que eles traziam. Nunca imaginei que alguém pudesse escrever assim. E por contraste, acabei me encantando também com Nelson Rodrigues, e seu cinismo cortante e as cenas surpreendentes que sempre construiu.
Essa é exatamente a mistura que aconteceu na minha obra. O lado africano dos meus primeiros livros tem um tom mais parecido com os contos de fada (e sua versão menos infantil que é a fantasia épica). A história de New, em contrapartida, tem um tom mais inspirado na irreverência de Nelson Rodrigues. E finalmente a história da Pilar vem da minha tentativa de brincar com o gingado linguístico do Jorge Amado e do Suassuna. Tudo isso com essas construções elaboradas onde tudo que acontece ao longo da história se revela importante no final, como um bom mistério de Agatha Christie.
B.D.W.: Sente alguma afinidade com algum outro autor do Nordeste, especialmente quanto ao papel da fé e do misticismo? E como é que isso figura na linguagem?
P.J.P.: Outro aspecto importante que a religião acaba trazendo é a magia. Eu gosto de acreditar em mágica. Na vida real talvez ela seja menos exuberante do que na ficção, mas esse contraste me encanta ainda mais. Na minha fantasia, contadores de história são capazes de enxergar e revelar essa mágica de uma forma mais clara. E aí voltamos ao Nordeste do Brasil.
Eu não penso em capítulos. Penso em cenas que devem ser assistidas atrás da testa. Quando um diretor de cinema conta uma história, ele tem imagens para mostrar. Tem figurinos. Música. Eles têm como combinar isso tudo, sem comprometer o ritmo da narrativa. Já na língua escrita, embora existam momentos em que descrições minuciosas e até trilhas sonoras sejam aceitáveis, em muitos momentos precisamos pular tudo isso e chegar na ação. E nesses momentos mais crus, tudo que nos resta, todos os recursos equivalentes à iluminação de um teatro e à música no cinema, por exemplo, é a escolha das palavras que usamos e como as combinamos na página. A economia de Hemingway faz suas histórias mais cruas e realistas. Agora compare suas construções com as de García Márquez, Mia Couto ou J.K. Rowling. Esses últimos tendem a usar palavras e frases que você não imagina, não espera, talvez nunca tenha visto. Algumas vezes essas são palavras inventadas, como as que Rowling usa em suas aventuras em Hogwarts. Mas o Vadinho de Jorge Amado faz a mesma coisa quando usa palavras que nos fazem rir imaginando o significado, sem nunca ter certeza do que elas realmente querem dizer. Quando optamos por uma linguagem desconectada da realidade do leitor (por ser inventada ou particular de uma região que não é deles) a leitura ganha esse aspecto mágico sem nem precisar de descrições sobrenaturais. Não temos música ou iluminação na literatura, mas temos o vocabulário e as construções de nossas frases e parágrafos. E aí, a cultura do Nordeste, tão cheia de segredos linguísticos e expressões mais que peculiares, se torna um ambiente muito fértil para esse tipo de narrativa onde a realidade é apenas o ponto de partida para universos muito mais esplendorosos.
Quando uma cena ou uma palavra aparecem e você pensa que nunca viu ou ouviu isso antes, mas faz todo sentido, a cena e a história ficam assim também – suspensa entre realidade e invenção. Tem um momento, na minha trilogia, quando Iemanjá, a deusa dos mares, caminha para dentro d’água e se mistura com os oceanos. Eu precisava de uma descrição para isso que fosse mágica, mas que fosse rápida também porque a cena não podia demorar muito. Então disse que Iemanjá se dissolveu em cardume. Essa expressão não existe nem seria possível, porque quando um sólido se dissolve num fluido, ele apenas se dissolve, não se dissolve em alguma outra coisa que não o fluido em si. Mas quando ela “se dissolveu em cardume” o contraste da palavra utilizada errada, com a imagem que ela cria, contam uma história completa de como, num momento mágico, ela caminhou para dentro do mar, e se misturou com ele, sem perder a sua individualidade.
B.D.W.: Você poderia dar algumas dicas quanto aos seus próximos projetos?
P.J.P.: Estou trabalhando num livro novo que combina tecnologias futuristas, mas que estão sendo desenvolvidas em laboratórios pelo mundo todo (interfaces computacionais ligadas diretamente ao cérebro) misturado com ideias ancestrais da China, tais como a filosofia daoista e o Tai Chi. É um projeto divertido de construir um universo inteiro, e explorar o conflito entre o novo e o velho, a ciência e a fé… bem do jeito que eu gosto. Só que dessa vez, em inglês. Estou dando os últimos ajustes no manuscrito, trabalhando exatamente na construção dessa voz narrativa, que deve ser uma mistura da vitalidade e a doçura do jeito chinês de falar de magia com a violência da narração de uma luta de UFC e o entusiasmo científico que você encontra em livros como os de Michael Crichton. Parece uma bagunça, mas estou gostando muito de como está ficando.
Quando escrevi A Mãe, a Filha e o Espírito da Santa, usei uma língua que não era minha também, que é a língua falada no nordeste do Brasil. Mas como eu sabia que jamais seria capaz de soar como um nativo real, eu criei uma língua minha, e um personagem para justificar essa língua. Pesquisei várias palavras que gostava, independente de onde eram e misturei tudo de propósito. Depois estabeleci que o narrador era o dono de um circo, que viajava por toda parte e assim absorvia essas palavras. Foi assim que inventei uma língua que não existe. Uma língua que vários leitores do Nordeste reconhecem parte como deles, partes como vizinhas, e se divertem com isso.
Agora escrevendo em inglês, encontrei um desafio parecido. Não tenho o controle da língua que tenho em português. A solução que encontrei, mais uma vez, foi escolher um narrador que também vivesse esse mesmo desafio. Assim, o livro é todo escrito em primeira pessoa, pelo ponto de vista de uma jovem mulher nascida e criada na China. O inglês dela é fluente e não tem erros gramaticais, mas ela não conhece as expressões mais convencionais do inglês falado, então tem que inventá-las dela. Que é exatamente o que acontece comigo na vida real. Quando cheguei na América, eu ficava tentando aprender as expressões idiomáticas, mas elas são tantas… um dia eu resolvi que, na falta delas, criaria as minhas. Lembro um dia que conversava com um amigo e queria dizer que estava lidando com vários problemas ao mesmo tempo que uma hora eu iria cometer um erro e aí seria um caos. Eu não tinha uma expressão para dizer isso tudo, então falei que precisava de ajuda porque eu estava “juggling tigers” e ele começou a rir. “Nunca ouvi essa expressão antes, mas ela faz todo sentido,” me disse. Foi aí que me dei conta que minha familiaridade parcial com a língua poderia ser uma vantagem. Que se eu abraçasse essa falta de conhecimento das expressões comuns (que muitas vezes seriam vistas como clichê) e as substituísse pelos meus instintos visuais, poderia desenvolver outro tipo de linguagem mágica. Nesse dia, estabeleci a aproximação linguística do livro que estava escrevendo e não consegui mais parar de escrever.