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“A morte é uma hipótese, redarguiu Aires, talvez uma lenda.”
Machado de Assis, Esaú e Jacó
“O olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio.”
Machado de Assis, Esaú e Jacó
“[…] não odeio nada nem ninguém, — perdono a tutti, como na ópera.”
Machado de Assis, Memorial de Aires
“Certamente ainda me lembram coisas e pessoas de longe, diversões, paisagens, costumes, mas não morro de saudades por nada. Aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei.”
Machado de Assis, Memorial de Aires
O pecado pouco original e a dor do joelho
Flor me colocava numa estante baixa entre uma cômoda de três gavetas e uma escrivaninha coberta de papéis desarrumados. Não quero valorizar essas minúcias, que não deveriam me ocupar quando me concentro na história principal. Se é que lhes conto uma história.
Se ela tem enredo, eu deveria lhes falar sobre um rapaz alto, elegante, que Flor encontrou quando decidiu fazer o concurso para diplomacia. Era primeiro-secretário e se chamava Zenir Ussier, de apelido Zeus.
Numa troca de olhares Flor e Zeus pensaram saber tudo um do outro, defeito dos apressados. Recitavam minhas frases de cor. Assim, dos livros à cama foram poucos passos.
Vamos aos passos. Zeus a convidou para uma festa. Se não reproduzo o diálogo é porque nada há de original nos prolegômenos do sexo. Muitos anos depois, ela tentou transcrever a longa conversa para um conto nunca publicado. Preservou do original uma troca de impressões sobre mim e sobre a carreira que abraçaria. Editou o texto, preencheu lacunas e criou uma linearidade que não aconteceu, pois houve momentos de hesitação, de silêncio e palavras se superpondo.
Num sábado nublado, Zeus trouxe ao apartamento de Flor, no bloco C da 307 Sul, as edições que tinha de minhas memórias e as apostilas de matérias do concurso para o qual Flor se preparava.
Não sobrou nada da aspirante à diplomacia, porque ele a devorou com os olhos. Examinava-a de alto a baixo enquanto ela examinava as apostilas.
Foi brutalmente jogada contra a estante, que começou a tremer. Embora eu quisesse reagir com naturalidade, caí fechado. Nada vi. Ouvi suspiros prolongados e gritos respondidos por outros mais altos. O prazer seria maior se rompesse a barreira da decência. Não vinha sem risco, mas que risco seria esse? Não era como ir à guerra, sobreviver na selva ou sequer enfrentar um posto de sacrifício.
O sexo foi violento e consensual.
Fechado estava e assim fiquei, no chão, calado. Não por pudor. Não podia falar.
“Jura que você era virgem?”
Não juro que a pergunta fosse feita diante do sangue no lençol, porque não vi, mas não era expressão de dúvida nem de inquietação.
Vocês poderão pensar que não caberia a mim, velho conselheiro, me imiscuir na vida privada de quem quer que fosse e menos ainda torná-la pública. Não faria isso se esse encontro não tivesse tido consequências que até hoje, quando Flor vive num país distante, se comentam nos corredores da chancelaria.
Não devo me adiantar. Como passar disso àquilo? Da dor da perda da virgindade à alegria de ser bem classificada num concurso difícil?
É questão de fechar os olhos e mudar de assunto. Já usei antes esse truque? Não posso me limitar por temas nem por encadeamentos da história, se na vida as coisas não se sucedem de maneira linear; se é feita de prazeres fugazes e longos sofrimentos, de planos e surpresas. Quanto mais num relato de memórias ou o que mais vocês queiram chamar o que lhes conto; relato no qual a memória é permeada de alheamentos provocados por páginas fechadas.
Apresso-me em fazer uma digressão. No Rio, com a idade, todos os meus ossos doíam. Reumatismo, que eu sentia sobretudo num joelho. Ah, a velhice… Ainda assim, tão logo melhor, eu caminhava da praia de Botafogo à do Russel.
Pois bem, um alívio. Em Brasília o reumatismo acabou. Não pela cidade nem por milagre; porque passei a ter papel no lugar dos ossos.
O joelho de Flor tampouco doía e, se alguma vez doeu, foi aliviado pelo namorado, Cássio, bom de cama e cozinha.
“O que o senhor me aconselharia, o senhor que é conselheiro, hein, conselheiro Aires?”
Flor acendeu um cigarro com isqueiro de ouro, presente de Zeus, reclinada sobre a janela que dava para a parte interna da quadra, onde crianças brincavam.
Cheguei a pensar que os telefonemas e as flores de Zeus, que acabava de ser removido para um posto na Europa e me parecia o mais enamorado, fossem suficientes para a decisão. Sem querer, eu continuava a aproximá-los. Mas nela as ideias e o desejo raramente coincidiam. Ela recusava com indignação suas investidas e acabava se rendendo a seus carinhos. Num pulo passava do gozo ao arrependimento. Não era racional um sentimento dúbio, volátil, ela sabia. Mas aquela não era matéria a ser submetida à razão.
“O senhor vai me acompanhar pelo resto da vida”, Flor me disse. “Confio no senhor.”
Tive que aceitar. Ela fazia o que queria comigo, o que não era muito. Tudo se limitava a palavras.
“O que o senhor me aconselharia, conselheiro?”
Se eu pudesse falar, diria ser retrógrado mulheres sofrerem pelo marido e considerarem a dor coisa divina. Seria injúria insinuar que a carreira que ela abraçaria era a do casamento, o que ocorreria se seu namorado Cássio não abandonasse a profissão para segui-la.
Meu julgamento estava defasado. Recém-formado em engenharia e sem trabalho, Cássio estava disposto a não trabalhar. Contentava-se em ser marido. Faria o mercado e se ocuparia da casa e da comida.
Seria paixão o que ela sentia por Zeus? Era outra coisa. Relação intensa, de altos e baixos. Coincidiam no interesse por mim. Ela admirava seu gosto por cinema e fotografia.
Hesitou em aceitar sua proposta de um ensaio fotográfico. Fotos em preto e branco, disparadas da forma mais tradicional, com uma Leica, e reveladas no laboratório caseiro que ele compartilhava com um amigo. Serviram para melhorar a autoestima de Flor. Seu corpo resultou em beleza para ela inesperada. Incomodou-se com algumas fotos, que quis destruir, ela numa rede em nu frontal, ela de costas na cama…
Havia encontrado homens atraentes, sensíveis, inteligentes, mas nenhum em quem vislumbrasse um companheiro para toda a vida. Existiria esse homem? Carinhoso? Compreensivo? Bonito? Cássio não era tudo isso? Não era quem lhe propunha casamento? Apareceria alguém melhor? Que qualidades excepcionais seu homem ideal deveria ter? Chegava a pensar que para a carreira talvez fosse melhor ficar solteira. Ela não tinha vocação para casamento.
“Por que se casar, conselheiro?”
Leu em mim orgulho e honra. Traduziu minhas atitudes de moderação e sensatez em possibilidade de se casar com Cássio. Poderia conviver com ele. O homem ideal não existia. A decisão era apenas entre se casar e não se casar.
Talvez vocês tivessem discordado. Tivessem querido aconselhá-la a adiar o casamento, a se casar com um terceiro ou a não se casar. O casamento foi na Igreja Nossa Senhora de Fátima, coberta de azulejos de Athos Bulcão e conhecida como Igrejinha. O padre, de tão contente, aparentava ser o próprio noivo. O noivo, ele, vestia-se de solenidade e timidez que se confundiam com respeito e admiração pela noiva. Imagino, e não posso jurar, que contribuiu para a decisão de Flor, que, mais do que ser compreensivo e amoroso, Cássio era um homenzarrão de corpo atlético, exibido em raro momento num terno cinza impecável e de listras verticais.
A noiva havia tido na adolescência tendência a engordar, mas quando a conheci já era apenas gorda de ideias. Não trazia um vestido de noiva tradicional. De cor menta, descia ao meio das pernas e deixava nus os belos ombros. Vocês poderiam imaginá-la uma figura sonhadora, pálida, de rosto bem desenhado, um desses personagens românticos do século XIX. Não, e não apenas porque havia aplicado um rosado leve nas bochechas. A imperfeição de seus traços revelava a fortaleza de sua personalidade. A doçura que transparecia na boca pequena e bem desenhada pelo batom contrastava com o nariz aquilino e a curiosidade, firmeza e brilho dos olhos grandes. Seus dentes muito brancos eram bem alinhados. E, se eu não a conhecesse de perto, juraria que havia feito balé, tal a pose ereta e a leveza ao caminhar, cheia de graça.
Eu já disse a vocês que não falava, mas me esqueci de acrescentar que sentia odores. Nas primeiras noites após o casamento, de sêmen. Flor tinha 23 anos, Cássio 22, e daí a seis meses nasceu Daniel, que não foi prematuro.
Do livro Homem de Papel, Editora Record, 2022