Editor’s Note: This text is available to read in the original Portuguese and in translation to both English and Spanish. Scroll down to read in English, and click “Español” to read in Spanish.
Tietê: Mãe do rio, região onde o rio alaga fecundando a terra
As aldeias indígenas estão sempre bem próximas de rios, lagos ou igarapés. Mas não são todos os grupos que se utilizam deles como seu principal fornecedor de matéria-prima ou da alimentação primária de seu cotidiano. Os povos são diferentes entre si e constroem sua visão de mundo baseando-se em suas crenças nas origens.
O povo Karajá, que habita a região do Tocantins, na ilha do Bananal, se considera saído de dentro do grande Araguaia. Eram tempos distantes quando seus ancestrais abandonaram o universo aquático e passaram para o mundo de cima, terrestre, movidos pela curiosidade e pela busca de novos caminhos.
Não é à toa que esse povo viva hoje em função do rio e suas casas sejam sempre construídas voltadas para a nascente. São exímios pescadores e canoeiros, e dos rios tiram a esperança e a crença no retorno de seu Criador. Também não é de se estranhar que eles sejam tão radicalmente contra a construção de hidrelétricas e hidrovias nos rios que banham suas aldeias! Sentem como se os engenheiros estivessem rasgando o coração dos deuses criadores!
Há povos indígenas que dividem sua vida em tempo de seca e tempo de enchente. É o caso dos Pirahã do Estado do Amazonas. Quando o tempo é enchente eles se mudam para os lugares mais altos e vivem a alegria da fartura e da festa. Cantos e danças são ouvidos nos lugares mais distantes. Vibram com o espírito da chuva que aproxima as caças dos caçadores e o verde das árvores. As beiras dos rios ficam inundadas, fazendo com que a vida refloresça e muitos outros seres da floresta venham para as suas margens se deliciar com a abundância das águas.
No tempo da seca, no entanto, a situação é outra. Todos temem a ausência de comida, da fartura, das bênçãos divinas sobre suas terras. É tempo de se alojar bem perto do rio, na esperança de que ele traga boas notícias. É tempo de esperar, e a hora do exercício de aceitação dos ciclos da natureza. Nesse período é preciso ter paciência e a certeza de que o tempo segue seu fluxo natural.
Meu povo, os Munduruku, vive às margens do grande rio Tapajós e de seus afluentes. Embora sejamos nascidos do fundo da terra –conforme narra nosso mito ancestral– fizemos do velho rio um aliado na manutenção de nossa existência, dele tirando parte de nosso alimento. Além disso, ele se tornou nosso velho e sábio avô, o patriarca que nos ensina a ter paciência e a esperar.
Desde criança aprendemos isso, e levamos esse ensinamento para os lugares onde passamos, na esperança de fazer as pessoas olharem para nossa Mãe Terra como um pouco mais de consciência e comiseração.
Quando adultos, levamos conosco a certeza do pertencimento e da não-posse.
Acreditamos que somos um com o planeta e não seus donos.
Um com a floresta e não os proprietários
Um com o universo, seus admiradores, e não seus dominadores.
Um com as pessoas e não seus senhores.
Um com a vida e não seus algozes.
E dessa maneira caminhamos pela terra: como observadores da sua beleza e de sua magia.
Seguimos o fluxo da natureza e, a partir de sua observação, procuramos criar formas de ajudá-la na sua tarefa de embelezar o planeta.
Talvez este seja o problema mais grave das pessoas da cidade grande: não conseguem ver beleza nas coisas criadas.
Beleza não é algo fácil de se encontrar andando às margens do Tietê, rio que outrora alimentou a alegria e a fome de muita gente. Quando passo perto desse antigo avô fico triste por tudo o que fizeram e ainda fazem com ele.
Acho uma grande falta de consideração e de respeito com um ser tão antigo, que continua dando o melhor de si para que a cidade funcione.
Sempre que passo pelas margens desse avô fico imaginando-o nos tempos antigos, quando era o centro da vida da aldeia de nossos antepassados. Imagino a movimentação das crianças brincando e correndo atrás umas das outras, fazendo a alegria do avô que a tudo assistia, impassível, mais feliz. Quantas aldeias havia em suas margens? Quantas pessoas ele alimentava? Quantas histórias já ouviu? Quantos casais de jovens namoram às suas margens? Quantas confissões já guardaram pra si? Quantos corpos tombaram ao seu redor?
Penso no caminho em que o Tietê se tornara, que ligava o norte ao sul, e dava direção aos navegantes. E então meu pensamento divaga na imagem do rio como um mensageiro que leva e traz notícias de longe, seguindo lentamente seu curso, sem pressa, mais com constância.Lembro, então, do meu avô, que me ensinou a chamar o rio de velho. Velho, para nós, e quem sabe mostrar o caminho, como esse rio que segue uma ordem interna que o leva a se encontrar como o maior dos rios, o mar.
Fico pensando no Tietê como esse velho que se deixava alagar para tornarse fertil e cheio de vida. Nesse rio oferecendo vida aos parentes índios que o navegavam.
É isso que penso quando, em minha canoa metálica de quatro rodas, percorro a extensão desse rio que rasga teimosamente a cidade, como a lembrar-lhe que é preciso valorizar o tesouro líquido tão vital para a vida dos homens e das mulheres de nosso mundo, e a nos dizer que nao podemos passar por esta vida sem fecundarnos nossas próprias margens, para que outros também tenham vida em abundância.
Tietê: Mother of the River, Region Where the River Floods and Fertilizes the Land
The indigenous villages are always very close to rivers, lakes, or igarapes (small streams).
But not all groups use them as their main supplier of raw materials or primary food for their
daily lives. People are different from each other and build their worldview based on their
beliefs in the origins.
The Karajá people, who inhabit the Tocantins region, on the Bananal Island, consider themselves to have come from within the great Araguaia. Those were distant times when their ancestors abandoned the aquatic universe and moved to the upper, terrestrial world, driven by curiosity and the search for new paths.
It is no wonder that these people live today in connection with the river and their houses are always built facing the spring. They are excellent fishermen and canoeists, and from the rivers they draw hope and belief in the return of their Creator. It is also not surprising that they are so radically against the construction of hydroelectric dams and waterways on the rivers that flow through their villages! They feel as if the engineers are ripping out the hearts of the creator gods!
There are indigenous peoples who divide their lives into times of drought and floods. This
is the case of the Pirahã of the State of Amazonas. During the flood season, they move to the
highest places and live the joy of abundance and celebration. Songs and dances are heard in the most distant places. They vibrate with the spirit of rain that brings prey closer to hunters and
makes the trees green. The banks of the rivers are flooded, causing life to flourish, and many other beings of the forest come to its banks to delight in the abundance of the waters.
In the dry season, however, the situation is different. Everyone fears the absence of food, of abundance, of the divine blessings on their lands. It is time to lodge close to the river, in the hope that it will bring good news. It’s time to wait, it’s time to practice the acceptance of nature’s cycles. During this period, you need to be patient and make sure that time follows its natural flow. My people, the Munduruku, live on the banks of the great Tapajós River and its streams. Although we were born at the bottom of the earth—as our ancestral myth reports—we transformed the old river into an ally in preserving our existence, taking part of our food from him. Furthermore, he became our wise old grandfather, the patriarch who teaches us patience and waiting.
We have learned this since we were children, and we take this teaching to the places where we go, hoping to make people look at our Mother Earth with a little more conscience and commiseration.
When we grow up, we carry with us the certainty of belonging and non-possession.
We believe that we are one with the planet and not its owners.
One with the forest and not its possessors.
One with the universe, its admirers, not its dominators.
One with the people and not their masters.
One with life and not its killers.
This is how we walk the earth: as observers of its beauty and magic. We follow the flow of nature and, based on its observation, we seek to create ways to help it in its task of beautifying the planet.
Perhaps this is the most serious problem for people in the big city: they cannot see the
beauty in created things!
Beauty is not something easy to find walking along the banks of the Tietê, a river that once fed the joy and hunger of many people. When I pass by that old grandfather, I feel sad for everything they did and still do to him.
I find it a great lack of consideration and respect for such an old being, who continues to do his best to make the city work.
Every time I pass by this grandfather’s shores, I keep imagining him in ancient times, when he was the center of the indigenous life of our ancestors. I imagine the movement of the children playing and running in groups, making the grandfather happy as he watched everything, impassive but happy. How many villages were there on his banks? How many people did he feed? How many stories has he heard? How many young couples fell in love on his shores? How many confessions has he kept to himself? How many bodies have fallen around him?
I think of the path along which the Tietê revolved, which connected north to south and gave direction to navigators. And then my thoughts wander to the image of the river as a messenger who takes and brings news from afar, following his course slowly, without haste but with steadiness. Then I remember my grandfather who taught me to call the river an elder. An elder, for us, is one who knows how to show the way, like this river that follows an internal order that leads him to encounter the greatest of rivers, the sea.
I keep thinking of Tietê as this old man who allowed himself to be flooded, to become fertile and full of life. Of that river offering life to the Indian relatives who navigated it.
This is what I think of when, in my four-wheeled metallic canoe, I travel the length of that river that stubbornly divides the city. The river reminds us we must value the liquid treasure so vital to the lives of the men and women of our world, and tells us we cannot go through this life without fertilizing our own shores, so that others may also have life in abundance.
Translated from Portuguese to English by Angelica Aguilar as part of a translation course taught at St. Mary’s University in San Antonio, Texas by LALT Indigenous Literature Correspondent Christian Elguera
Photo: Kawê Rodrigues, Unsplash.