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I.
Eu queria usar palavras de ave para escrever.
Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação.
Ali a gente brincava de brincar com as palavras
tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!
A Mãe que ouvira a brincadeira falou:
Já vem você com suas visões!
Porque formigas nem têm joelhos ajoelháveis
e nem há pedras de sacristia por aqui.
Isso é traquinagem da sua imaginação.
O menino tinha no olhar um silêncio de chão
e na sua voz uma candura de Fontes.
O Pai achava que a gente queria desver o mundo
para encontrar nas palavras novas coisas de ver
assim: eu via a manhã pousada sobre as margens do
rio do mesmo modo que uma garça aberta na solidão de uma pedra.
Eram novidades que os meninos criavam com suas palavras.
Assim Bernardo emendou nova criação: Eu hoje vi um
sapo com olhar de árvore.
Então era preciso desver o mundo para sair daquele
lugar imensamente e sem lado.
A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas pela inocência.
O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias
para a gente bem entender a voz das água e
dos caracóis.
A gente gostava das palavras quando elas perturbavam
o sentido normal das ideias.
Porque a gente também sabia que só os absurdos
enriquecem a poesia.
IV.
Lugar mais bonito de um passarinho ficar é a palavra.
Nas minhas palavras ainda vivíamos meninos do mato,
um tonto e mim.
Eu vivia embaraçado nos meus escombros verbais.
O menino caminhava incluso em passarinhos.
E uma árvore progredia em ser Bernardo.
Ali até santos davam flor nas pedras.
Porque todos estávamos abrigados pelas palavras.
Usávamos todos uma linguagem de primavera.
Eu viajava com as palavras ao modo de um dicionário.
A gente bem quisera escutar o silêncio do orvalho
sobre as pedras.
Tu bem quiser também saber que os passarinhos
sabem sobre os ventos.
A gente só gostava de usar palavras de aves porque
eram palavras abençoadas pela inocência.
Bernardo disse que ouvira um vento quase encostado
nas vestes da tarde.
Eu sonhava de escrever um livro com a mesma
inocência com que as crianças fabricam seus navios
de papel.
Eu queria pegar com as mãos no corpo da manhã.
Porque eu achava que a visão fosse um ato poético
do ver.
Tu não gostaste do caminho comum das palavras.
Antes melhor eu gostasse dos absurdos.
E se eu fosse um caracol, uma árvore, uma pedra?
E se eu fosse?
Eu não queria ocupar o meu tempo usando palavras
bichadas de costumes.
Eu queria mesmo descer o mundo. Tipo assim: eu vi
um urubu dejetar nas vestes da manhã.
Isso não seria de expulsar o tédio?
E como eu poderia saber que o sonho do silêncio era
ser pedra!
V.
O lugar onde a gente morava quase só tinha bicho
solidão e árvores.
Meu avô namorava a solidão.
Ele era um florilégio de abandono.
De tudo que me restou sobre aquele avô foi esta
imagem: ele deitado na rede com a sua namorada, mas
se a gente o retirasse da rede por alguma necessidade,
a solidão ficava destampada.
Oh, a solidão destampada!
Essa imagem da solidão que ficara dentro de mim por anos.
Ah, o pai! O pai vaquejava e vaquejava.
Ele tinha um olhar soberbo de ave.
E nos ensinava a liberdade.
A gente então saía vagabundeando pelos matos sem aba.
Chegou que alcançamos a beira de um rio.
A manhã estava pousada na beira do rio desaperta moda
um pássaro.
Nessa hora já o morro encostava no sol.
Logo adiante vimos um quati a lamber um osso de ema.
A tarde crescia por dentro do mato.
O lugar nos perdera de rumo.
A gente se sentia como uma pedaço de formiga perdida
na estrada.
Bernardo completava o abandono.
Logo encontramos uma criame de caracóis nas areias
do rio.
Quase todos os caracóis eram viúvos de suas lesmas.
Contam que os urubus, finórios, desciam naquele lugar
para degustar as lesmas ainda vivas.
Se diz ainda que este recanto teria sido um pedaço do
Mar de Xaraiés.
Na beira da noite a gente estava sem rumo.
Bernardo apareceu e disse que vento é cavalo.
Então montamos na garupa do vento e logo chegamos
em casa.
A mãe aflitíssima estava.
Ela cuidava de todos: lavava, passava e cozinhava
para todos.
Porém à noite a mãe ainda encontrava uma horinha
para o seu violino.
Ela tocava para nós Vivaldi.
E a gente ficava pendurado em lágrimas.
Um dia que outro eu contei para a Mãe que tinha visto
um passarinho a mastigar um pedaço de vento. A Mãe
disse outra vez: Já vem você com suas visões! Isso é
travessura da sua imaginação.
É a voz de Deus que habita nas crianças, nos passarinhos
e nos tontos.
A infância da palavra.
18.
Bernardo armou sua barraca na beira
de um sapo.
Ele era beato de sapo.
Natureza retrata ele.
Bernardo é criador.
Ele viu um passarinho sentado no ombro do arrebol.
Lagarto encostava nele para dormir.
25.
Ponho por caso um tonto.
Um que natureza progredisse
para árvore.
Um que vadiasse de ave como
as pedras vadiam de orvalho.
Um que soubesse de flor
como as abelhas sabem.
Isso isso!
Era um tonto que quisesse
adquirir uma linguagem de rã.
Para se escrever em rã.
De Menino do Mato. Editora Alfaguara, Rio de Janeiro, 2015.