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Número 30
Literatura Brasileña

Pai preto

  • por Sheyla Smanioto
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  • June, 2024

Nota del editor: Este texto está disponible en portugués e inglés. Haz click en “English” para leer en inglés.


Para ele

 

Meu pai é preto.

Quando eu tinha onze, fomos morar na adolescência dele, do lado do campinho das peladas, no Morro Dunga, Jardim Míriam. Ele saiu de lá ainda tinha black power, mas quando eu fiz onze ele já era calvo, botava a culpa em mim e eu ria até ficar vermelha. Eu indo para a escola passava na frente e via a adolescência do meu pai gritando para passarem a bola no campinho, “a gente era uns dez, o Tavinho está vivo”.

Meu pai trabalhava no centro de São Paulo desde muito antes de conseguir parcelar o gol branco, quadrado, que levava e trazia a gente do Guarujá. Meu pai ia para o centro de ônibus, descia até a avenida Cupecê para pegar o primeiro, “você lembra da ditadura, pai?”, “sim, naquela época eles pediam a carteira de trabalho antes de bater”. 

Eu perguntava da luta contra os militares e ele só me falava do frio nas orelhas. 

Eu perguntava das passeatas, dos segredos, mas ele falava das mãos dele congelando e doendo e dele não sentindo mais nada até a ponta, “nas passeatas?”, “não, indo pro trabalho”. O frio, um frio terrível nas orelhas porque não podia usar touca, “não podia usar porque você era comunista?”, “não, não era por isso”.

O moleque meu pai ia trabalhar de madrugada, a cabeça descoberta, as mãos cruzadas no peito, ia duro de frio pra não morrer de apanhar. Os lábios mortos, a marmita tremendo na bolsa, um passo depois do outro tentando com raiva não desfazer o silêncio, “fala, vagabundo, vai para onde essa hora?”, “trabalhar, senhor”, “trabalhar? Com essa cara de favelado?”, “sim, senhor”, “cadê a carteira de trabalho?”.

O moleque meu pai não podia usar touca e nem enfiar a mão no bolso, ele ia devagar e apontava o bolso da calça para não levar um tiro. Meu pai ainda não enfia as mãos no bolso, às vezes ele é só um moleque e quando caminhamos juntos até o mercadinho eu pergunto: “não está com frio nas mãos, pai?”, eu pergunto e ele esfrega uma mão na outra, duas pedras tentando fazer fogo, “nesse calor?”.

Meu pai é preto.

Quando eu tinha onze a gente ia pro Guarujá no gol branco, ia e voltava no mesmo dia, eu querendo sentar na frente e ele “ainda não”. 

A gente descia a Imigrantes e paravam a gente e olhavam o carro e pediam meu documento, “é sua filha?”, “é, parece comigo?”, os policiais riam e eu ria também e o policial ficava sério olhando minha certidão de nascimento. Devolvia o documento para o meu pai terminar de dobrar e falava que ele parecia alguém, todas as vezes, “um conhecido nosso, policial”. 

[—-]

Um dia eu tomei coragem e perguntei para o meu pai: “por que você sempre parece com algum policial?”. Ele sorriu e eu nunca vi meu pai tão triste. 

Meu pai é preto.

Eu fiz treze e fomos morar na minha adolescência. Sentei no banco da frente com raiva, íamos de novo para o Guarujá, sempre o Guarujá, “não vai levar nada?”, meu pai pergunta, “já falei que não”. O policial “para, para, para”, sempre a mesma dança, o mesmo pedágio, “é sua filha?”, “é”, o policial olha o carro por dentro como um dentista, eu e meu pai dentro da boca aberta, “cadê o documento?”, olho para o meu pai, vim só com a roupa do corpo, o policial põe a mão na arma, “sai do carro”.

Meu pai é preto.

O policial me chama e eu não entendo, “senhorita?”, eu vou com ele tremendo, eu não entendo, “eu preciso que você fique calma e fique olhando pra mim, combinado?”, eu não entendo, eu tento procurar os olhos do meu pai e pedir socorro e pedir desculpas mas o policial entra na frente, “ele não tem como ouvir você”.

Eu enterro meu corpo dentro da blusa e sinto o frio do meu pai sem camisa lá atrás, sinto o frio do corpo dele de novo um moleque só de bermuda, o peito aberto diante da arma.

Eu abaixo a cabeça procurando meu pai aqui dentro e não falo nada com medo de as palavras derrubarem algo no chão, quebrarem, mas o policial insiste, “pode me contar a verdade”, eu só quero o meu pai, o abraço dele, “calma, não precisa ficar nervosa, eu sei que deve ser difícil para você”, o policial me provoca, “ele mandou você dizer que é filha dele, não foi?”.

Ele fala e eu levanto a cabeça com medo, com raiva, fazendo os cálculos, “fica calma”, a arma, o cacetete, a mão, “nós vamos proteger você”, eu não entendo, eu não quero entender, “pode falar a verdade agora”, eu fico quieta como meu pai me ensinou, “ele ameaçou você, não foi? Eu sei, mas não precisa ter medo, você está com dó?”. Eu fico tentando ouvir a respiração do meu pai lá longe e o polícia: “eu vou facilitar para você, não precisa nem falar, é só acenar a cabeça, é só piscar, um sinal, é só me dar um sinal e eu vou saber que ele está mesmo sequestrando a senhorita”. 

Meu pai é preto.

Eu sou branca, percebo.

 

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Foto: Marcos Paulo Prado, Unsplash.
  • Sheyla Smanioto

Sheyla Smanioto was born in 1990 into a working-class family in Diadema, São Paulo state, then the most violent town in Brazil. In 2017 she was selected by Forbes magazine as one of the people under 30 making a difference in Brazil. With her two published novels, Desesterro (2015, appearing in English as Out of Earth in 2023) and Meu corpo ainda quente (2020), she has won the SESC, Biblioteca Nacional, and Jabutí prizes, as well as being shortlisted for the São Paulo literature prize.

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